Ruy Guerracontos

Pablo
Ruy Guerra




Crepúsculo, céu sem nuvens, tons batidos de azul e negro, pinceladas vermelhas de poente, o vento corre na erva alta, num sussurro brando, uma arvore seca recorta os galhos despidos no vermelho do horizonte; a noite cai lentamente, as sombras adensam-se, o véu é já um charco negro e triste, o vento pára, silencio, nem o piar agourento e soturno dum mocho, nem o rumor cristalino dum regato. O céu e a terra se fundiram numa massa toda igual, é noite; uma tênue claridade filtra-se através do firmamento, bate no solo, a erva ondula mansamente, a arvore ergue-se do solo, torce atira para cima os braços nus numa prece muda, uma onda de prata banha a escuridão, a lua nasceu.

* * *

Envolto no seu poncho, Pablo, a cabeça na sela, as mãos debaixo da cabeça, olha para o alto, procura estrelas com o olhar, tres, três, ali, não, não é, parecia, baixa com as mãos os cabelos esparsos, caramba, só tres, move ligeiramente a cabeça e arrisca um olhar pra direita, uma, duas, quatro, retoma a primitiva posição, quatro, quatro com tres, sete, sete estrelas, sorri, há no seu sorriso a tristeza.

A pequena distância crepita uma fogueira, tres tijolos, tições acesos, cinzas dispersas, as chamas estendem-se e encolhem-se numa dança quente, o bojo de uma panela estampa grotescamente a sua sombra gorda no chão avermelhado, mais adiante um cavalo tasquinha placidamente a erva abundante.

Pablo levanta-se preguiçosamente, estende os braços entorpecidos e aproxima-se do fogo, deita um bocado de água a ferver num punhado de chá numa cumbuca, o liquido escaldante corre-lhe pela garganta, sabe bem, aquece, toma outro gole. O seu olhar passa lentamente em volta, a planície sem fim, o céu agora é ponteado de estrelas, fixa-se na lua, lua cheia, tempo bom para caça.

Esmagado pela distancia ouve-se o uivo de um lobo vermelho, lamento prolongado e triste, acompanham-no outros, fica a escuta, logo lobos vermelhos. Diego Gaúcho é devorado por uma matilha dele, foi numa noite bela como aquela noite boa para caça, ele ainda era pequeno, devia ter 6 ou 7 anos ou não, mas lembrava-se não se tinha apanhado o menor resto do valente Diego, Diego Lopes, seu pai, por isso aquela aversão aos lobos, não temia-os, odiava-os, muitas vezes sentia as carnes rasgadas pelas suas presas afiadas, por muitas mesmo, mas escapara sempre, até um dia escaparia sempre.

O ganir fez-se ouvir de novo, em coro, cada vez mais longe mais gemebundo, mais sentido, Pablo não lhes prestava atenção, o instinto do animal que luta pela existência estava alerta e bem. O pensamento, esse, andava já distante, e com ele uma sombra de melancolia.

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Rumo. Algo. Gargalhadas. Tangos. Pablo saiu da taberna, uma sensação de mal estar invadiu-o, não estava acostumado a aqueles ambientes fechados e ruidosos, talvez até por não estar acostumado eles lhe deveriam agradar, mas não, bebida, danças, conversas tudo lhe punha mal, até a própria musica, aquilo nem musica era, respirou fundo, sentia dentro de si, um bafo viciado produto de egoísmo e corrupção, queria o trocar pelo o que estava habituado, ar puro, selvagem sim, porem cheio de liberdade e frescura, sentiu-se melhor, caminhou lentamente, as taboas rangiam sobre seus pés, dirigiu-se para “Panchito” “o cavalo pressentiu a aproximação” ergueu a cabeça com as crinas balouçantes, escavou o solo impaciente, Panchito saudou comovidamente o gaúcho, o animal relinchou, Pablo afagou Panchito, repetia mais baixo, querido Panchito, aquele era o seu fiel amigo, tinha o trocado pelo convívio dos homens, e agora o seu erro, porque os homens apesar do grande numero de leis, não se sabiam ainda governar, ficara aturdido, e com Panchito sentia-se reconfortado, não feliz, talvez nem mesmo pudesse já ser feliz, precisava esquecer tudo que vira e sofrera em tão pouco tempo, mas com tão grande intensidade; queria voltar de novo para a solidão dos pampas, sim, solidão que reconhecia amar, queria estar de novo junto a natureza, longe dos homens. Vamos Panchito, murmurou tristemente, perdeu-se na distancia.

A voz de Pablo Lopes ecoou pelo silencio, voz suave, voz quente, voz triste, Mi vuelto, pampa mia.

Magude, setembro de 48