Ruy Guerracronicas

Cadê aquela França?
Ruy Guerra




Eu nasci ouvindo falar da França.

Comunicados da BBC de Londres que logravam furar as interferências atmosféricas. Depois, decifrando seus apontamentos e as notícias dos jornais do dia, marcava cuidadosamente as posições das tropas em conflito num imenso mapa grudado na parede da garagem, com alfinetes coloridos, bandeirinhas Meu pai fazia parte de uma geração que acreditava que a Revolução Francesa tinha tornado o mundo mais justo. Falava francês com orgulhoso acento e conhecia profundamente a sua história e literatura.

Gostava de dizer, enfático:

- Todo o homem que ama a liberdade tem duas pátrias: a sua e a França.

Ainda muito pequeno, sentado em seu colo, fui carinhosamente levado a aprender uma canção num idioma estranho que mais tarde soube ser o francês. Foi talvez a primeira canção de que guardei a letra completa. Muitos anos mais tarde, já em Paris, tentei restaurar a onomatopéia com que meu pai tão risonhamente se deliciava e consegui apenas descobrir algumas palavras que faziam sentido. O resto era uma amálgama de sons sem sentido.

Ouvi pela primeira vez as fábulas de La Fontaine no original e guardo daquelas leituras uma imagem de encantamento, e o fascínio daqueles imensos volumes de capa vermelha com sedutoras imagens a bico de pena. Havia uma magia naquele idioma aveludado e ronronante que parecia abrir caminhos para um mundo novo.

Tinha 7 anos de idade quando rebentou a Segunda Grande Guerra. Longe da Europa, à beira do Indico, protegido pela distância e pela neutralidade de Portugal, meu cotidiano de criança em nada foi abalado, a não ser no ritual de todas as noites. Agora, quando meu pai regressava do trabalho não havia tempo para fábulas. Ele tomava um rápido banho, mastigava qualquer coisa e ligava o rádio. O ouvido colado, papel e lápis na mão, anotava os e números.

E assim a guerra me foi sendo contada.

Uma noite eu vi meu pai chorar e fiquei abalado. Mas ele se recompôs, os olhos coruscantes ainda úmidos, me agarrou nos fortes braços e de pé, cantou "Marselhesa", acompanhando os acordes vibrantes do hino nacional francês fritados pela estática. Seguiu-se um discurso vibrante sobre a força indomável e o sentido de liberdade e justiça do povo gaulês e compreendi que a França tinha caído nas mãos do inimigo.

Daí para diante eu vivi no meu mundo e naquela garagem, entre Emilio Salgari e De Gaulle; entre leituras de histórias em quadrinho e feitos de Timoshenko, Patton e outros generais aliados; entre lutas de espada de pau na mão e avanços dos tanques de Rommel e Montgomery; entre a coleção de "Vanguard", jornal de propaganda americano entoando loas à heróica resistência de Leningrade e brigas de tapa com os irmãos Passaláqua, germanófilos assumidos. Entre o bigodinho de Hitler, as baforadas do charuto de Churchill. o queixo levantado de Mussolini, o bigodão caído de Stalin, a cadeira de rodas e os óculos sem aro de Roosevelt.

Os anos passavam e o mapa, inundado de riscos, marcas, bandeirinhas, se esfarrapava, junto ao velho "Plymouth" verde com para lamas pretos, labirinticamente atualizado todas as noites.

Mais crescidinho vibrei com "Casablanca" e apesar de já ser fã de Humphrey Bogart apoiei a decisão de Ingrid Bergman seguir o canastrão Paul Henreid, na sua luta contra os nazistas. Pela primeira vez, e o filme me fez descobrir essa emoção, eu ouvi a "Marselhesa" que meu pai ouvia.

Ele viu a guerra com olhos e coração de homem livre, rosnando contra Salazar, suspeito de simpatias pessoais pela Alemanha, e que mantinha uma vergonhosa neutralidade para Portugal, fazendo de sua querida Lisboa um antro de espiões de todas as nacionalidades.

Eu fui aprendendo a ver a guerra pelos olhos de meu pai, mas me custava muito organizar um pouco aqueles nomes todos, em tantos idiomas, de gente, cidades, batalhas, com acentos trocados e datas difusas, num mundo adulto, abstrato, desconexo e estilhaçado.

Como me custa agora ver a França - aquela França que meu pai me ensinou a olhar como uma segunda pátria da humanidade - renegar todo seu passado, repatriando à força emigrantes "em vôos da vergonha", com uma maioria francesa silenciosa apoiando uma política de direita xenófoba e perigosamente racista.