Ruy Guerracronicas

Tenho muito medo
Ruy Guerra




Não gosto de ópera.

Esse era um dos grandes desgostos de meu pai, tenor frustrado.

Desde que me conheço ouvi dissertações entusiásticas sobre os grandes clássicos, bem como relatos sobre tenores como Caruso ou Gigli, seu preferido.

Um de meus terrores era ver meu pai entrar no banheiro. Já sabia o que me esperava. Não adiantava cerrar as portas do quarto por que sua voz atravessava as paredes com o inevitável, "Ri,ri, palhaço". Eu quase chorando de desespero, sentia os pelos da pele se me eriçarem, numa reação quase alérgica, como meu cachorro "Rex", que uivava quando tocava minha gaita de boca.

O banho matinal de meu pai era um suplício de que tentava escapar enfiando a cabeça debaixo do travesseiro. Sem resultado, por que meu pai, os quadris enrolados na toalha de banho, passava inevitavelmente por meu quarto para me fazer sair da cama, com um vibrante dó de peito.

- Os cristais não resistiam a essa nota, dada por Caruso - costumava afirmar.

Eu também não, e me escapava rapidamente para meu turno de nosso único banheiro.

Era uma trágica maneira de começar o dia.

Quando fui a Portugal pela segunda vez na vida, já com meus 18 anos feitos (a primeira não conta por que tinha apenas 2 anos de idade), logo na primeira semana de estadia meu pai chegou à pequena pensão onde nos hospedávamos, perto da praça do Marques de Pombal, e anunciou com um grande sorriso:

-Esta noite vamos à opera.

Consciente da importância que era para ele me levar a ver minha primeira ópera, concordei.

Naqueles tempos, em que as pessoas se vestiam especialmente para ir ao cinema, imaginem o que não era ir à ópera. Não me recordo da roupa que usei. Cairia bem dizer que meu pai chegou com um smoking alugado mas não me lembro se assim foi. O que posso garantir, de boa-fé, é que se tal fosse preciso ele traria algum traje a rigor alugado debaixo do braço para o grande momento iniciático. E foi talvez o que aconteceu.

-Depois de veres uma boa ópera nunca mais serás o mesmo - afirmou, os olhos coruscantes.

O entusiasmo, marcando o forte estrabismo do olho esquerdo decididamente rumo ao oeste, dava-lhe um ar demoníaco.

Lá fui eu, fazendo das tripas coração, desconchavado no meu traje improvisado.

O fato é que depois de ter resistido bravamente às estridências do primeiro ato inventei uma indisposição intestinal premente e escapuli.

Foi uma das grandes desilusões de meu pai, de que não me perdôo.

Um trauma tão marcante que nunca mais o ouvi cantar no banheiro,como poderia? Não voltamos a morar juntos... e quando por acaso a sua obsessão o levava inadvertidamente a falar de ópera, imediatamente mudava de assunto com um breve olhar de desculpa para o meu lado.

Já adulto, traumatizado pela minha intolerância (o que me tinha custado assistir a uma ópera inteira, apenas uma, para dar tão grande satisfação a uma pessoa tão generosa?), tentei me interessar pela ópera. Vão esforço.

O que não me impede de reconhecer a sua importância, e de ficar vivamente comovido pela entrevista dada pelo barítono Nelson Portella, com mais de 112 papéis e apresentações nos maiores teatros do mundo. Tendo perdido a voz se dedicou a montar espetáculos de ópera no Rio de Janeiro, trabalho que exerceu até ao ano passado. Com a nova prefeitura perdeu o emprego e agora, deprimido, sem nenhuma fonte de renda, sem ter como sobreviver, abandonado por tudo e todos, busca desesperadamente uma saída para sustentar a mulher e um filho de apenas 4 anos de idade.

Declara estar com muito medo de tudo. Acrescenta, desesperado:

- Aceito qualquer coisa.

Não sei da história toda.

O que sei é que tem de haver um espaço de trabalho digno para alguém com seu passado.

Seu medo, desassombradamente exposto à luz do dia, é o medo de todos artistas deste país.

Não apenas dos cantores de ópera.