Ruy Guerracronicas

O muro da lógica
Ruy Guerra




As vezes a gente enfrenta situações para as quais não está preparado.

No outro dia fui visitar um conhecido, com quem mantenho uma amigável relação, sem muita intimidade, mas com quem gosto de bater um papo. Era a primeira vez que ia a sua casa e por uma dessas imprevisibilidades do trânsito, cheguei antes da hora combinada.

- Papai disse para esperar.

O garotinho me observou dos pés à cabeça e ficou me olhando, a porta entreaberta, sem me dar passagem. Por um desses mistérios da memória me lembrei de seunome.

Sorri, sedutor.

- Você é o Pedrinho, né?

Finalmente decidiu-se a falar, com um fiozinho de voz angelical.

- Papai foi comprar cigarros e eu estou jogando videogame.

Continuou me olhando, impassível, sem se mover.

Sabia que ele não estava sozinho por que tinha sido uma voz de mulher, a mãe ou uma empregada, não dava para identificar pelo interfone, que me tinha aberto a portaria e pedido para subir.

- Mamãe está?

- Tá tomando banho. Ela disse para eu abrir a porta.

Sorri e empurrei suavemente o batente.

O garotinho soltou um pequeno guincho e se opôs de todas as suas forças. Resolvi não forçar. Perguntei, com aquele característico tom de voz imbecilizada que os adultos usam automaticamente para falar com as crianças:

-Posso entrar?

-Não.

A resposta não era agressiva, mas firme.

- Você não quer que eu entre?

O garotinho analisou demoradamente a questão antes de responder.

- Você sabe jogar videogame?

- Sei.

- Você joga comigo?

- Jogo.

- Então quero.

Mas continuou na mesma posição, me espreitando pela frincha da porta.

Apelei.

- Se eu ficar aqui, não posso jogar com você. Onde é que está o videogame?

- No quarto.

- Então vamos.

Inabalável, o garotinho sacudiu a cabeça.

- Não.

- Porquê?

A resposta do garotinho fez voltar tudo à estaca zero.

- Papai disse para você esperar.

- Então deixa eu entrar para esperar por ele.

- Ele não disse para deixar você entrar.

Eu sabia que o meu amigo chegaria a qualquer momento, ou a mãe terminaria o seu banho, mas subitamente compreendi que não queria ser vencido pela lógica absurda de uma criança

- Sua mãe não mandou abrir a porta?

- Eu abri - foi a lacônica resposta.

Nem procurei argumentar. Senti que por ali não havia como contornar a situação. Ele estava obedecendo rigorosamente às instruções que havia recebido. Eu estava esperando, a porta tinha sido aberta e ponto.

Sorri, um tanto amarelo. Não queria aceitar, mas começava a me sentir ridículo, barrado por aquele anãozinho teimoso. Por um fugaz momento pensei em forçar a entrada, mas logo renunciei à idéia. Acendi um charuto e procurei deslumbra-Io com algumas rodelas de fumaça, mas meu nervosismo contido, ou algum vento encanado, fizeram fracassar minhas tentativas.

- Vovô sabe fazer argolinhas de fumaça.

Me senti diminuído.

- É? - comentei do alto da minha majestosa estatura, olhando-o com uma certa raiva. - Ele também fuma chaúto.

Corrigi.

- Charuto. Não é chaúto, é cha-ru-to.

Os olhinhos se abriram um pouco mais, com o esforço.

-Cha-úto...

Insisti, satisfeito com a minha superioridade.

- Cha-ru, charuto.

Ele tentou repetir, diligente:

- Chaúto...

Sorri, subitamente apaziguado. No fim de contas tratava-se apenas de um menininho obediente e eu ali, me irritando pelo simples fato que...

- Ele também é velho.

O "também" trouxe uma raiva que eu pensava sepultada. Explodi, subitamente descontrolado.

- Velho é a puta...

O "que os pariu" bateu em cheio na cara surpresa da mãe, que escancarara a porta, uma toalha cobrindo os cabelos úmidos.

Foi só o tempo de bater em retirada, pela escada, perseguido pela voz curiosa do anãozinho:

- Mamãe, qué puta?