Ruy Guerracronicas

Amargo travo de saudade
Ruy Guerra




Há três momentos cruciais na preparação de um filme: o da formação da equipe técnica, da definição das locações, e o da escolha do elenco.

Não vai faltar quem observe - e com razão -, que pouco sobra e tudo é importante. É verdade, mas têm dinâmicas distintas.

Uma equipe técnica com algumas deficiências pode provocar embaraços na filmagem, certos problemas, mas excluídas algumas áreas mais sensíveis, dá para ir em frente. Além do mais o diretor se limita a escolher os colaboradores diretos, em cada área, deixando a estes a seleção de seus assistentes.

Quando se trata das locações, mesmo que se tenham imaginado alguns locais de filmagem, a verdadeira decisão depende de fatores que não podem ser considerados como resolvidos à "priori": custos; autorizações; uma lógica de produção que determina a eliminação de cenários demasiado distantes uns dos outros; impedimentos de filmagem (como o pé direito demasiado baixo para a iluminação no caso de interiores); exteriores de controle complicado; dificuldade de determinados espaços para desenvolver a ação dramática, tal como foi concebida no momento em que se escrevia o roteiro imaginando um cenário ideal; etc... O que torna esta etapa mais complexa.

Mas quando chegamos à decisão sobre o elenco, como é o meu caso agora, atingimos o ponto mais delicado. Em última instância, os atores (é o caso de se dizer), são a cara do filme. São os primeiros violinos da orquestra, e de seu talento depende, em enorme proporção, o resultado final.

Por vezes um roteiro é escrito com algumas participações definidas. Mas quando é o caso, isso se resume a dois ou três atores principais, se é que eles ainda estão disponíveis quando a data de filmagem (sempre incerta no nosso cinema, e não só!), é decidida.

Me lembro de "Os Fuzis", quando o personagem de o Gaúcho era para ser interpretado por Jardel Filho.

À minha grande admiração pelo seu talento se juntou o fato, que totalmente por acaso, fui parar no Leblon, num apartamento da Rua General Urquiza, onde Jardel morava no final do mesmo corredor.

Uma longa espera - e vários adiamentos da produção -, reforçou nossa amizade.e nos permitiu ir conversando sobre o personagem, que o encantava particularmente. Não víamos a hora de começar a rodar e pôr em prática o que tão demorada e apaixonadamente estávamos elaborando. Jardel pontuava a espera e os bate-papos com freqüentes injeções de vitaminas, uma em cada braço, e várias vezes não logrei escapar de algumas injeções solidárias. Com o decorrer do tempo, sempre que saíamos juntos, se no trajeto surgia o espectro de alguma farmácia eu desviava imediatamente de rota, apesar dos veementes protestos de Jardel que havia assumido carinhosamente o papel de médico particular, com consultas grátis e injeções por sua conta. Era um jogo de gato e o rato: Jardel frequentemente me pegava distraído e quando dava por mim era tarde demais para escapar aos dolorosos coquetéis. Outras vezes eu me plantava ridiculamente do outro lado da calçada, resistindo aos chamados de Jardel, que se divertia com o meu pavor.

Por uma dessas ironias do destino, quando inesperadamente o produtor Jarbas Barbosa deu o sinal verde, Jardel havia acabado de assinar um contrato.

Não posso dizer que o personagem tenha sofrido por sua ausência, uma vez que tive a sorte de contar com Átila lório, grande figura humana e aplicado profissional. Mas foi um momento de grande tristeza, e apesar de arquitetarmos diferentes projetos, nunca conseguimos trabalhar juntos - até por que depois de "Os Fuzis" 'só voltei a filmar no Brasil 6 anos mais tarde.

Restou uma sólida, duradoura, e hoje saudosa amizade - o que não é pouco. Mas fica, para sempre, o amargo travo de ter perdido a oportunidade de trabalhar com um grande amigo e um dos maiores atores do teatro e do cinema brasileiro.