Ruy Guerracronicas

Flores do pântano
Ruy Guerra




Gosto de falar da memória. Mais, do seu avesso.

Costumo me perguntar de onde vem esta obsessão, e encontro muitas respostas, nenhuma me satisfaz e sigo perguntando e tentando me responder. Me pergunto se foi sempre assim, se quando era jovem, ou menino, a memória - e seu avesso - já me fascinavam. Fico feliz de não me lembrar, por que posso responder sim, ou não, segundo as circunstâncias, sem me preocupar com o que possa ser a verdade. A de então e a de agora.

Tenho amigos de memória descomunal e que se vangloriam disso. Lembram-se de tudo. São capazes de datas, de pequenos detalhes, chegando ao cúmulo de citar a cor da camisa de todos os presentes num encontro daqueles em que nada se passou que mereça ser lembrado. Eu fico ouvindo-os, mas o meu deslumbramento, hoje, dura pouco.

Confesso que passei a ter pena deles. Quando comecei a detectar este meu sentimento cheguei a pensar que era uma forma de mascarar a minha inveja. Agora tenho certeza que não, embora exista um pouco de arrogância nesta minha convicção. É que descobri, que o esquecimento pode ser mais prazeroso do que a memória. Por que na verdade ninguém esquece nada, apenas não é capaz de se lembrar aquilo que pensa que esqueceu. Tudo fica por aí, desarrumado, passeando por onde quer, encapuzado em algum lugar da cabeça, fora de alcance imediato. Mas nada desaparece, definitivamente. Não some, não morre, apenas se afunda em abismos de nós mesmos.

Digo isto, por que quando menos se espera, a história do tal encontro em que aquele amigo de memória de elefante lembrava a cor das camisas, emerge, lentamente, e você encontra uma imagem esquecida, mais fascinante que as imagens arquivadas pela implacabilidade da memória.

Isso só é possível pelas mágicas do esquecimento.

Não vou negar que por vezes me indaguei se não se tratava de defender uma limitação, de escapar de um sentimento de inferioridade. Garanto, de pedra e cal, que não. É por que simplesmente descobri os prazeres do esquecimento, desse tipo de esquecimento de coisas aparentemente perdidas mas vivas, que não surgem do passado acessadas pela vontade da memória, mas por um mecanismo de que você não tem controle sobre os comandos que o acionam. Irrompem bruscamente ou afloram com languidez, como encontros inesperados com dimensões de você mesmo que pareciam desfeitas. Esses encontros são estimulantes, até por que inesperados. Essa memória avessa não vem pronta, como a outra, mas aparece como uma estrada de brumas, que é preciso pai milhar.

É como viver uma nova aventura, com o toque de estranheza de um "dejá-vu". Você lembra de coisas, fatos, cheiros, sons, num quebra-cabeças que é necessário reconstituir, que exige um esforço de vontade - mas em que ela não é garantia de sucesso. Você lida com fragmentos, fantasmas, imagens difusas, que se delineiam e esfumam. É um espasmódico jogo de espelhos embaçados, em que a memória e o esquecimento se confundem nas suas virtual idades intrínsecas, num jogo de sedução, em que você é simultaneamente o algoz e a vítima.

Quando se entra nessa jornada o regresso é inconcebível. O túnel em que nos enfurnamos exerce uma atração indomável. E nessas andanças em que o passado escamoteado vai se formatando, sem garantias de veracidade, o imaginário - só possível pela ausência da rígida firmeza da memória - vai cobrindo lacunas e vazios, como uma falsa verossimilhança.

É do esquecimento, húmus, que se alimenta a imaginação, flor do pântano.

É do esquecimento que os escribas, no seu mesquinho labor, arrancam a proeza do texto - ou nele se sufocam.