Ruy Guerraentrevistas

Ruy Guerra abre o verbo
Ivalda Freitas, Henrique Faulhaber e Caio Rubens




RUY GUERRA é dos mais destacados realizadores do Cinema Brasileiro. Embora seja moçambicano de nascença foi aqui que fez na maioria, os seus filmes dentre eles “Os Cafajestes”, “Os Fuzis”, “Os Deuses e os mortos” e agora “A Queda”.
Esta entrevista foi feita em sua casa no começo do mês de agosto e desde lá tem saído uma série de outras entrevistas com ele pela imprensa, mas julgamos interessante publicá-la, pois aqui de maneira mais detalhada discutimos o Cinema Brasileiro na atual conjuntura, e algumas das ideias de RUY GUERRA são mais esmiuçadas.
Este papo gira principalmente em cima do projeto de cinema nacional e popular e das possibilidades abertas em Moçambique, onde RUY GUERRA irá contribuir para o Instituto Nacional de Cinema.
Sem dúvida ele continua sendo uma figura polêmica, que dentro do grupo que fez o cinema novo se coloca de maneira alinhada na sua postura em relação ao desenvolvimento do cinema brasileiro.

CINE-OLHO – A discussão de cinema popular, que tá votando agora, é uma proposta feita desde o Cinema Novo – como é que você conceituaria cinema popular. Como você coloca a proposta de cinema popular agora, nessa atual conjuntura?

RUY GUERRA – O cineasta popular te vários ângulos pelo qual ele pode ser encarado. Eu creio, inclusive, que se presta uma confusão muito grande no sentido do cinema popular em termos simplesmente de público, de massa de público, quer dizer, um filme é visto por muita gente. Claro, que de uma certa forma, ele pode ser encarado assim. Agora, se você quiser aprofundar um pouco a questão e questionar o cinema popular ao tipo de público que vê e a função do cinema diante desse público, você tem que desenvolver uma posição diante disso, Quer dizer, eu não considero simplesmente que um filme que seja visto por muita gente, seja um cinema popular e que esse cinema também não atue de uma determinada forma política em relação a essa plateia. De maneira que, se desenvolvendo nesse sentido a proposta de cinema popular, o cinema que tá sendo feito, fica muito mais difícil de ser analisado, Porque, por exemplo, um filme americano como “Tubarão” não representa um cinema popular ou um filme, por exemplo, que possa ser visto simplesmente pela alta classe média mundial através de uma distribuição, não é um cinema popular, embora possa ser visto por centenas de milhares de pessoas. Então, aí você entra numa análise qualitativa dos próprios filmes. De fato, um cinema popular é um cinema que tem que ser visto por grandes massas de público, mas que tem que se determinar se atinge, de fato, as massas mais populares – de menor poder aquisitivo, as massas do proletariado, problema rural do cinema popular e em que medida esse cinema tá inserido em um projeto político, que seja também pra transformação da sociedade. O cinema popular está fundamentalmente entre esses eixos. Nesse sentido, o cinema brasileiro nunca foi um cinema popular, nunca teve condição pra isso. Primeiro porque da maneira como se faz a distribuição, nunca se atinge as classes populares, as classes baixas, as classes rurais, as classes campesinato, a classe do proletariado urbano. Quando algum filme conseguiu penetrar nessa faixa – que são os filmes que têm um projeto puramente capitalista, de arrecadação de dinheiro que não tem um projeto político de transformação dessas classes. Quer dizer, então não houve um cinema popular. Então quando um cinema popular novo se propôs, em tese, a ser um cinema popular – é uma coisa que eu sempre discuto - quando dizem que o cinema novo é um cinema elitista e tinha várias características elitistas, mas acontece também que nunca pode ser testado o elitismo da linguagem do cinema novo. Ele nunca foi visto fora de uma média burguesia e de pequenas áreas urbanas de um público já das classes populares, então, nunca foi testada a linguagem do cinema novo. Porque, se por exemplo, pegarmos uma estatística que eu tive em mãos há uns tempos atrás sobre o comportamento operário em São Paulo, uma estatística extremamente, elucidativa a esse respeito, que é de 72 e se baseia no operariado especializado no ramo automotriz, que já é o operariado mais especializado da classe industrial, que é o que mexe com automóveis. Havia toda uma análise de segmentos de trabalhadores, outra parte de brasileiros mesmo, mas altamente especializados e dentro disso, a gente verificava que mais de 50% nunca ia ao cinema e dos 50%, havia 40% que ia uma vez por mês e dos outros 10% quem ia uma vez por semana era 0,5%. Dentro das faixas etárias a partir dos 25 ou 26 anos ninguém ia ao cinema, Então, nem sequer a elite do operariado em São Paulo ia ao cinema e acredito que esses que iam uma vez por mês, não iam ver um filme brasileiro, possivelmente iam ver um filme de maior impacto publicitário, que seria um filme americano do tipo “King-Kong” ou qualquer coisas dessas. Então, esse problema do cinema popular, que o cinema novo tentou desenvolver em tese como uma proposta individual de cada um dos autores – ele nunca foi exercido, nem testado na prática, Por outro lado, isso também não é um quadro inteiramente vinculado à situação brasileira. Porque também tinha nesse livro uma estatística do mesmo ano de Toulouse, na França, que também é um centro operário e que justamente os percentuais batiam quase que de uma forma idêntica, quer dizer, não é uma componente específica do operariado brasileiro. Bom, isso pra dizer o seguinte; da maneira como o cinema novo tentou ser popular foi por tentativa puramente ao nível ideológico. Como também hoje, ele pretende ser popular num nível ideológico, só que naquele momento havia uma boa fé, uma intenção real do popular no sentido que a proposta de linguagem, a proposta de temática e as análises críticas e a desmistificação que se propunha em informação eram muito mais agudas, muito mais pertinentes. Hoje, o popular, de uma certa forma, eu estou vendo que está sendo utilizado mais como um álibi pra uma colocação muito mais de “marketing”. É mais um potencial de arrecadação, de giro de capital dentro do cinema, do que uma intenção política ou uma intensão transformadora da sociedade.

CINE-OLHO – Quando se fala em popular também se fala num outro lado, ou seja, num projeto de construção de um cinema popular, dum cinema que defenda os interesses do povo e sob o ponto de vista do povo. Aí o conceito de popular enriquece, quer dizer, quando você fala de cinema popular, se tenta falar de uma série de outras coisas. Tomar como uma palavra de ordem de uma coisa mais ampla. Como é que nisso, você continuaria a sua impressão sobre o cinema popular?

RUY GUERRA – O problema do cinema popular, eu acho, fundamentalmente esse. É muito difícil você ter um projeto de um cinema popular se você coloca ele, encarado politicamente como um agente de transformação e que representa os valores de uma determinada classe, que são as classes proletárias, de menor poder aquisitivo (que deveriam ser as classes adjetivadas de popular); é muito difícil, quando toda a estrutura da sociedade, na qual a estrutura econômica do cinema está inteiramente dependente - ela tem uma estrutura que está contra esse movimento político. É muito difícil tentar fazer cinema popular no Brasil, quando as estruturas de financiamento da produção, distribuição e exibição são todas elas dentro de um projeto capitalista, um projeto verdadeiramente violento. Então o cinema popular é uma contradição em que os cineastas se debatem, entre uma vontade de fazer um certo tipo de cinema e concretizar isso num plano real. Então, a partir dessa corda bamba em que e o pessoal fica, há quem aproxime mais de uma coisa ou da outra. Mas, na verdade, um projeto de cinema popular no Brasil consequente, eu acho que é quase uma utopia, enquanto não houver uma transformação da sociedade ou um abrandamento do quadro político e econômico.

CINE-OLHO – Como é que você coloca o problema da autocensura?

RUY GUERRA – Não é propriamente uma autocensura. Porque a autocensura, colocaria problema da codificação, do quadro do código da censura que bem ou mal, embora a censura seja muito arbitrária, é apreensiva de uma certa forma. Mas no quadro da censura, embora seja a posteriori, embora tenha reflexos, determine todo o comportamento de uma produção, ela não é tão violenta nesse sentido como quadro econômico. A censura econômica da qual a censura política, a censura do Departamento de Polícia Federal, como órgão faz parte, essa censura faz parte de todo um cerceamento, e que é parte de um quadro e esse quadro mais violento é um projeto econômico que torna viável um certo tipo de cinema, que é todo um dirigismo econômico a um certo tipo de cinema, que é feito através das distribuidoras, dos projetos dos produtores, dos exibidores e que faz de todo uma repressão de um estatuto colonial em que o cinema está inserido aqui. Porque não é possível um financiamento de certos tipos de filme, mesmo que a censura oficial deixasse passar, mesmo se não houvesse esse fantasma. Porque já haveria uma possibilidade ao nível econômico de passar esse tipo de filme, porque não existem estruturas que possam levar esse tipo de filme a essas camadas que estariam interessadas nesse projeto. Então, se atribui já ao público em gosto, e se chama de público, de consumidor e já tem toda a taxação da sociedade de consumo, se atribui uma série de valores e necessidades e a partir dessa colocação se fornecem produtos que satisfaçam à isso. Então você não pode de maneira nenhuma encarar um projeto político mas um projeto puramente consumista, de realização de um produto manufaturado que passa a ser o filme. Esse quadro não possibilita um tipo de cinema popular que se propõe a um debate de certas ideias, se por acaso passasse pelo crivo da censura, mas que independente desse crivo não consegue sequer se viabilizar em termos de produto. Temos a censura oficial, mas temos antes uma censura econômica violentíssima que é resultante de uma estrutura inteiramente dominada pelo filme estrangeiro, pelas grandes distribuidoras, pelas grandes cadeias de exibição e com reflexo no nível da produção.

CINE-OLHO – Você acha que a Embrafilme exerce a censura econômica?

RUY GUERRA - A Embrafilme não exerce censura econômica; ela, como está inserida dentro desse sistema, é um reflexo disso. Nós não podemos querer que a Embrafilme, mais uma vez uma visão utópica – nós não podemos querer que ela, como um órgão estatal e que representa todo um esquema existente, tenha uma proposta contra o projeto do Governo atual, porque hoje todo projeto econômico é no nível de consideração da riqueza, no grande desnível social, ora nós não podemos pensar que a Embrafilme vai encampar esse projeto político. Então ela procura no máximo ser liberal e dificilmente atinge esse status.

CINE-OLHO – Então, nesse nível devido a estrutura da produção no Brasil, os projetos sofrem um processo de autocensura em função do capital necessário para a realização do filme.

RUY GUERRA - Eu acho que todos os projetos sofrem autocensura. Mas mesmo um país como o Canadá, que não tem censura oficial, eu conversando com o canadense, eles também sofrem autocensura, porque pelo fato deles não terem censura eles não tem parâmetros. Então eles não sabem o que abordar – “porque tudo é possível dizer, a gente já não sabe nem o que é mais importante” – quer dizer, a dificuldade de ser livre. Autocensura existe sempre no nível da opção, a partir do momento que você opta por um argumento ou por um determinado nível de diálogo ou de monólogo ou do que seja, você de uma certa forma se condiciona em função do interlocutor, em função do potencial de gente que você quer atingir e tudo isso pode ser chamado como autocensura. Claro, que a gente se referencia à Censura Oficial - em que medida o teu discurso é modificado a parti da repressão que existe do órgão oficial. Bom, mas esta autocensura que é importante e que é rela, ela não é a única. Existe uma censura real. Uma colocação, que eu acho, que é falha é a de colocar sempre num nível dos autores, dos cineastas, a responsabilidade do tipo de filme que eles fazem. Existe um quadro real econômico, a partir do qual você não consegue vencer essas barragens e quando tentas fazer isso, não consegue – como já tentei várias vezes, já perdi anos de minha vida e não consegui. Porque é, de fato, muito difícil. Existem coisas reais, então não basta simplesmente haver uma liberação psicanalítica do teu condicionamento de censura e a partir daí como um sujeito liberado “eu como não exerço mais autocensura, vou em frente como um Dom Quixote e consigo” – não consegue mesmo. Porque se fosse assim, seria muito simples. Então não é dizer que não existe uma autocensura - ela existe, mas geralmente o quadro de diálogo com o poder real, a partir do qual você equaciona o tipo de obstáculo que tem pela frente e diante disso as pessoas dizem: “não adianta ir para aqui, então eu vou fazer outra coisa”. Às vezes, esse diálogo é mal realizado e geralmente fazem menos coisas que poderiam ser feiras também quando se quer fazer um pouco mais não conseguem ser feitas. Eu acho muito importante esse problema de autocensura, porque não tem -se tendência em colocar isso num nível psicológico. E não é o nível psicológico que é importante, também tem uma importância, mas não é aí que a coisa pega. É que há um quadro real repressivo em todas suas formas – uma censura real sobre a forma de exibição, distribuição e dos produtores que também não podem investir capital e que lutam dentro dessas contradições. Dentro disso o próprio cineasta que tem que se adaptar nesse estatuto tentando fazer um cinema popular, que passa a ser uma coisa mítica! É uma proposta quase que impossível! É a mesma coisa que chegar numa democracia popular e fazer um cinema defendendo o capitalismo. Quer dizer, adotas o projeto socialista e vais defender o capitalismo? Aqui é quase que a mesma coisa! E isso apoiado num órgão que veicula o capital, que é um órgão estatal, e vês a contradição. Imagina agora ires pra Cuba e através do ICAIC, defendendo a estrutura capitalista com a ajuda do ICAIC! É um pouco da situação do cineasta brasileiro, que não tem outras fontes de capital e que procura dentro disto, explicar certos movimentos de certos filmes que viram para a alegoria e entram em formas quase elitistas e masturbatórias de expressão, tudo na tentativa de reconciliar essa contradição.

CINE-OLHO – Você colocou as dificuldades do projeto de um cinema popular diante de uma conjuntura política e econômica adversa. Como você colocaria esse projeto diante de outras conjunturas, como Moçambique que passa por uma transformação radical e o Brasil na época do Cinema Novo?

RUY GUERRA – Acontece que na época do Cinema Novo - ele teve muito pouco tempo. Na verdade nós começamos a fazer os primeiros filmes em 62 e em 64 houve o golpe do Estado. Quer dizer, teve 2 anos. A partir de 64 a 68, ainda houve uma espaço pra um certo tipo de produção, um certo espaço político e econômico, mas que foi cada vez mais raro, mas que ainda criou um certo espaço. Mas, na verdade, o nascimento, o apogeu e o declínio do Cinema Novo foi numa rapidez incrível em termos de tempo. E além do mais as condições econômicas do Cinema Novo passaram a partir de 64 a inexistirem. Se você pegar e ver os critérios dos filmes, quase todos eles te agradecimento ao Banco de Minas Gerais, do José Magalhães Lins, um banco vinculado ao Magalhães Pinto. O banco tinha aberto uma carteira não oficial de crédito, uma carteira oficiosa em que emprestava dinheiro para os filmes, sendo que não havia obrigatoriedade de pagamento. Não havia um prazo “X” para pagamento, podia pagar daqui a 1 ano ou 2 anos, quer dizer, ficavas devendo “ad aeternum”. A partir daí havia uma carteira, então, que permitia e facilitava a feitura de certos filmes. Bom, agora, essa carteira deixou imediatamente de existir, porque inclusive o Banco de Min as Gerias ao mesmo tempo que financiava o Cinema Novo, financiava o plebiscito, o Jango e o Magalhães Pinto já estava vinculado aos militares para o golpe de Estado de 64, Quer dizer, não houve, de fato, um grande espaço econômico e político para o cinema poder se desenvolver, já de imediato. Além do mais, eram todos fazendo filmes pela primeira vez, se testando em forma de linguagem, se testando em forma de experiência, de diálogo, com todas as limitações de falta de conhecimento de si mesmo e do instrumento que estavam usando. Isso cria uma série de exorcismos pessoais, uma necessidade de aferições de linguagem. Tornava os primeiros filmes menos passíveis de serem claros pelo próprio processo natural de depuração que cada um estava começando a manifestar dentro de um novo processo de linguagem. Então, é difícil você usar o Cinema Novo com um referencial concreto, porque ele foi também muito conflitado, muito dividido pela própria realidade - um período muito curto de tempo. Depois de todas essas contradições e imediatamente o 64 em cima, que foi um golpe violento. Não houve tempo para o Cinema Novo. Quando ele começou a atingir o apogeu, já estava ao mesmo tempo na sua curva descendente, pelas condições existentes. Hoje, as condições são muito mais fáceis de fazer filmes, é muito mais fácil através da carteira de crédito da Embrafilme, também dentro de um quadro de contradições que existem; contradições que existem; contradições de ordem política que determinam que há uma certa possibilidade de se fazer certos filmes, mas agora, ao mesmo tempo, essas contradições não são tão agudas que permitam, de fato, estabelecer projetos realmente voltados para uma visão política que seja antagônica com a visão oficial. Você poderá testar certas coisas, mas chegar de fato a fazer um filme que tenha de fato um projeto popular, isso não. E você vê os filmes que estão sendo feitos, a maior parte deles caem em filmes populistas pela tentativa desse compromisso. Eles não são filmes populares, são filmes que usam mais o povo do que propriamente se voltam para o povo. São as festas, são as danças, é o povo visto de um visão inteiramente paternalista – o que é o populismo se não o paternalismo político? E: é dentro disso, que você consegue realizar os filmes, mas também é pela dificuldade de poder, de fato, se ligar ao povo como um projeto político, porque é uma barra muito pesada essa, que você não consegue de maneira nenhuma levar mais longe.

CINE-OLHO – Você consegue visualizar como é que o sistema, o Ministério da Educação se aproveita desta indefinição ideológica, da política cultural mesmo do Governo. Como é que isso se apresenta ao nível de produção de cultura no Brasil hoje?

RUY GUERRA - Não, é fácil explicar certas razões de hoje. Porque para haver um cinema popular era preciso que houvesse toda a estrutura política também voltados para esse projeto. Nós temos agora, no momento, um país em que não existem sindicatos. Os sindicatos são inteiramente sem expressão. Não existem partidos políticos. Então, só a cultura isolada, a cultura como elemento de superestrutura já com suas próprias contradições pelo fato de ser um objeto, um instrumento de alto custo aquisitivo, quer dizer, manipulado já pelas mais altas da população, portanto também desligada das massas populares e não existe nenhum instrumental de aproximação dentro dessas massas populares como um instrumental político, a não ser o próprio encaminhamento individual de cada um desses cineastas ou escritores. Então, sem esse instrumental de aproximação e esse desligamento, a tendência é que a cultura se volte, olhe para o povo de cima para baixo e é o que está acontecendo. CINE- OLHO - Mas parece que isso, inclusive depende da própria forma capitalista do cinema. Quer dizer, o cinema é um tipo de produção cultural, ao contrário da literatura e de outras formas culturais, que demanda um capital muito grande. Seria isso que afastaria o artista cinematográfico do povo?

RUY GUERRA – De uma certa forma é. Porque como é um custo grande para o fabrico do produto, evidentemente você está ligado à problemas econômicos e isso já ajuda o teu afastamento. Mas, se nós formos mais longe, você vê que mesmo nas outras formas de expressão, mesmo na literatura, na poesia e até na pintura (formas mais desvinculadas do capital) – não existe de fato uma literatura popular, concreta e real. Portanto não é só o problema econômico do cinema, mas todo o projeto político da nação que leva à isto.

CINE-OLHO – Você coloca a coisa como uma impossibilidade completa de se fazer um cinema popular no Brasil. Uma coisa sim, é impossível fazer através da Embrafilme – uma vez que ela é um aparelho do Estado que está seguindo a política oficial do Governo mas será que não haveria possibilidade de se fazer um cinema popular, não ligado à Embrafilme - tentar criar um cinema paralelo?

RUY GUERRA - Haver possibilidade há, agora, depende como é que vão ser criadas essas possibilidades, qual é o potencial disso. Porque pra haver um cinema popular desvinculado dela, você tem que criar outras áreas de capital. Então, dentro da estrutura tradicional do giro de capital de cinema, quer dizer através das distribuidoras, dos exibidores e dos produtores, você não encontra nenhuma possibilidade dentro disso, então você tem que arrumar um maior fluxo de capital paralelo. Bom, a partir desse dado você teria que fazer um baixo custo e eventualmente partir para a bitola de 16mm entrar em circuitos paralelos. É preciso que você crie esses circuitos. Ora, isso não é obra de uma pessoa. Não é uma pessoa que pode arrumar produtores. Pode até conseguir um produtor, fazer um filme, mas depois quando entra na questão da distribuição, você já entra numa barreira quase intransponível. Embora, haja a tentativa de certas distribuidoras como a Dinafilmes em 16mm, que estão ampliando esse circuito. Isso é uma coisa muito restrita. Então mesmo nessa faixa, o popular ficaria no nível da feitura do filme. Mas nunca o popular no nível da sua aproximação com o público. Haveria filmes, eventualmente populares, mas que não chegariam às massas chamadas populares. Então, é um projeto que é muito difícil de ser feito em termos individuais. Eu não estou colocando a barreira da impossibilidade, mas uma coisa que você pode considerar é que o cinema tenha um comportamento autônomo, fora da realidade atual política e econômica. Quando se questiona o cinema, muitas vezes, se questiona dentro de uma forma muito absoluta, esquecendo-se todas as implicações que ele está sofrendo dentro desse processo. Há, eu acho, espaço pra muita coisa. Como também acho. Que um dos grandes males da Embrafilme (e que não é por acaso) é não desenvolver a política de 16mm, mas isto justamente porque não interessa criar condições pra certo tipo de cinema. Interessa sim, inflacionar os orçamentos, interessa as grandes produções, interessa competir no mercado externo e no mercado interno, mas dentro de um certo nível chamado “qualidade”. Mas, não interessa, por exemplo: desenvolver cineastas jovens, a bitola 16mm, seu circuito e baixos custos orçamentários que possivelmente abordariam certos tipos de problemas mais próximos à realidade. Tudo isso não interessa a Embrafilme. E ao mesmo tempo interessa a quem/ Quem tá com esse projeto econômico? Ninguém sabe. Ainda não apareceu nenhum Mecenas.

CINE-OLHO – Considerando a pequena burguesia dentro do conceito de povo, seria possível um cinema popular que agisse de maneira a levar a consciência crítica à essa classe média?

RUY GUERRA – Aconteceu que, pela estatística semioficial, 94% da população está ganhando menos que o salário mínimo. A partir disso, então, eu não estou colocando unicamente as classes do proletariado e do campesinato. Eu estou colocando toda a proletarização da classe média que a está existindo e tá altamente pressionada pra baixo. Tanto que o grande furo do modelo econômico brasileiro é justamente a tentativa desenvolvimentista e o baixo poder aquisitivo interno, que é a grande concentração da riqueza. Quando 94% da população está ganhando menos que um salário mínimo, a classe média já está sendo colocada. A baixa classe média e a média classe média que está sendo pressionada pra baixo e tá incluída dentro desse projeto. O que eu estou falando na realidade é dentro de um projeto político definido, que parte de uma análise política que ainda é um pouco esquemática, mas que é real, pelo menos historicamente, que é o fato de tomarem em conta os interesse das grandes massas do povo. Isso não exclui do povo a classe média, não é isso que eu estou querendo elaborar aqui. O que eu estou querendo é um cinema que tome em consideração as grandes necessidades da maior parte do povo. Agora, geralmente como acontece que a classe média tem uma série de valores próprios, inclusive quando ela se proletariza, e chega num nível de consciência contra seus próprios interesses de classe continuando com uma dinâmica própria que tem que ser analisada à parte. Então, estou colocando o cinema mais popular como um cinema mais vicnculado ao proletariado, às massas do campesinato. Porque a classe média tem uma moral própria – que geralmente é moral do Poder – mesmo quando ela tá sofrendo o processo de desgaste que o poder impõe sobre ela. Então, quando eu tô falando do cinema popular, eu digo que seja fora desse tipo de análise, eu estou tomando isso em consideração também. Não estou dizendo que não possa ser abordado problemas de diferentes classes. Se eu fizer uma análise de porque a classe média vota na Arena contra os seus próprios interesses pessoais... eu acho, que é um cinema que interessa. Pode ser um cinema popular.

CINE-OLHO – A classe média é o público atual consumidor de cinema e é o público que já foi formado pelo cinema – esse cinema tradicional que existe. Seria necessário, por exemplo, você abrir o cinema para outras classes que não assistem cinema, como você falou, para o proletariado. A sua própria elite que não assiste filmes. Quer dizer é um projeto muito mais, de você levar o cinema para outras pessoas, inclusive transformar o cinema. A classe média já existe filmes.

RUY GUERRA – A verdade é que isto implica em modificação de estrutura e elas estão muito difíceis de serem feitas. Tinham que ser modificações ao nível da distribuição e exibição e aí você entra em conflito com os monopólios estrangeiros. Como você não está amparado por leis locais, a não ser leis nacionais muito reduzidas e muito consentidas pelos acordos de café, por exemplo, o cinema vai junto. Como te aí o representante da Motion Pictures em permanência pra fazer exibições na Embaixada pra deputados e pra manter o controle das reivindicações de cinema nacional. Então, enquanto não houver essas modificações fundamentais e radicais, é muito difícil você fazer um cinema popular – porque a linha oficial do Governo não permite e a linha econômica do país determina o movimento contrário.

CINE-OLHO – Mas o cinema popular também não seria um tipo de cinema de resistência contra esse tipo de estrutura – uma vez que o Poder sempre vai querer impedir uma forma de expressão popular que vá contra os interesses dele?

RUY GUERRA - O Poder sempre não, certas formas de Poder! Não, o que você está se referindo é um cinema militante – um cinema de guerrilha, mas isso já é uma forma particular de atuação política, que o cinema também se inscreve. Agora, o cinema dentro da sua trajetória de consumo e da sua trajetória lúdica e dentro das formas tradicionais, não. Claro que há sempre o espaço pra um cinema de guerrilha, desde que consiga ser exercido.

CINE-OLHO – Entrando no problema da linguagem: um público que já está acostumado a um certo tipo de filme, ele já está acostumado a um certo tipo de linguagem tradicional que veicula um determinado tipo de ideia, de ideologia. Quer dizer, um cinema crítico, que tipo de estratégia teria com esse público, com esse tipo de linguagem que o público já está acostumado? Usar uma linguagem tradicional pra veicular novos conteúdos ou transformar a linguagem?

RUY GUERRA – Isso cada um é que vai tentar resolver no seu nível individual. Eu não acredito na possibilidade de uma ideia nova numa forma velha. Aí você tem que ter uma discussão de forma e conteúdo, que é uma discussão muito difícil. Mas a partir do momento que você coloca que a forma não está de fora ou que o conteúdo não está de fora da forma, porque a tendência é considerar o conteúdo como uma coisa interna e a forma uma coisa externa, então basta preencher como se fosse uma salsicha e não é bem assim. É muito difícil, você considerar uma linguagem velha, desgastada que já tem uma série de motivações emocionais e já está saturada de significados e tentar revitalizá-los aponte de poder dar um sentido contrário a isso. Eu não acredito nessa possibilidade. Eu acredito que a necessidade de uma abordagem de problemas novos te obriga a busca de uma linguagem nova e essa coisa de substituir uma coisa pela outra – não acredito. Por isso eu não acredito em certos filmes, como “Xica da Silva”, que tenta fazer isso. Eu acho um filme inteiramente velho, reacionário, falho em todos os níveis, embora não ponha em dúvida as intenções do Cacá. De qualquer maneira, como é que isso pode ser feito – só na prática é que você pode determinar a validade e a aferição de tua linguagem. É muito difícil num nível de gabinete você determinar formas, ideias e linguagens que não são testadas na prática.

CINE-OLHO – Fale um pouco sobre “A Queda”, por exemplo.

RUY GUERRA – “A Queda” pra mim foi uma necessidade de colocar, fundamentalmente, uma paisagem humana que não está sendo vista no cinema nacional, que é a personagem de gente trabalhando e de povo mesmo, de massa operária, embora não vá muito longe na análise. É quase que uma necessidade de ordem visual, de cheiro, de cor de certa forma.

CINE-OLHO – O projeto parece que é de 71, não é? Como é que ele evoluiu?

RUY GUERRA – É, já de muito tempo que eu tenho essa ideia. Eu já falei isso numa entrevista e volto a falar – aquela ideia do Glauber “uma ideia na cabeça e uma câmera na mão” que o Nelson agora desenvolver e disse “e o povo na frente”, eu desenvolvo, abro um parêntese e digo: mas, não em festa.

CINE-OLHO – Então, “A Queda” obedece essa necessidade de pôr o povo na frente, mas não em festa, não é?

RUY GUERRA – Não dançando, nem em candomblé, e m capoeiras. Que eu acho que tudo isso está dentro de um conceito estratificado de povo e nas suas formas paradas. “A Queda” é a necessidade de uma abordagem de certas formas reais, certas formas concretas que por si mesmo já trazem a sua própria informação, que não há necessidade única e explícita de você por ela em movimento – mas já trazem a sua própria explicação. Como eu acredito muito, que se você pega um candomblé e filma ele e o inscreve dentro de um discurso dum filme - a não ser que teu posicionamento seja muito claro, muito crítico dentro disso – a força do candomblé traz muito mais a sua própria informação do que propriamente aquilo que você possa atribuir a ele e eu acho que está sendo usado um pouco esse folclorismo dizendo que representa o povo. Representa sim, até as formas mais alienadas e alienantes do povo e daquilo que o ajuda a manter nesse estado de alienação. Então é extremamente perigoso utilizar essas formas, a não ser com muita clareza e eu acho que esses são comportamentos um pouco dúbios. Existe clareza na análise de processo que está acontecendo. Então “A Queda” é um filme muito menos ambicioso. Eu peguei uma paisagem humana simples de gente trabalhando e conto uma estória de reivindicação puramente social num nível até reformista, simples. Uma posição de um operário que tem uma posição inteiramente reformista que é casado com a filha do empreiteiro, um amigo morre e ele tenta reivindicar num nível legal os diretos da viúva e a partir daí há uma pequena análise da estrutura do poder das imobiliárias e toda a forma de manipulação de toda uma faixa de gente.

CINE-OLHO - Você tocou num problema que pinta muito no cinema brasileiro, que são exatamente as formas de cultura popular – a relação do cinema brasileiro com as formas de cultura popular. Sente-se hoje, principalmente através do Nelson, uma preocupação de pegar a cultura popular – quase que mistificar a coisa. Pegar o candomblé, por exemplo, e mistificá-lo como uma forma de resistência, de luta. Isto se contrapõe muito à época do Cinema Novo, que eles colocavam essas formas populares como formas alienantes, que impediam o povo de ver uma determinada realidade e canalizavam as coisas para vias religiosas e místicas. São duas visões bem diferentes. Que tipo de posição você tem em relação à isso? Como encarar a cultura popular?

RUY GUERRA – Eu considero que isto é resultante dessa vontade de colocar o povo na tela e essa impossibilidade real de se aprofundar a relação com o povo. Então, encontra um instrumento, que é um instrumento intermediário – o folclore – em que o povo aparece em toda a sua exuberância, na sua manifestação cultural máxima, mas que na verdade nessas manifestações ou o povo é uma expressão parada ou então são formas alienantes. Eu estou inteiramente contra esse posicionamento, inclusive acho extremamente perigoso a manipulação desse tipo de informação. Porque a partir do momento em que você joga com o conceito de miscigenação, como o Nelson joga no último filme dele “A Tenda dos Milagres” (eu não li o livro, não sei como está lá, mas acredito que seja a posição do Jorge Amado) em que ninguém põe em questão a partir do momento em que você representa a cultura do negro que é a classe reprimida, mas representada pelo candomblé, que é uma forma alienante (e basta ver na prática para ver o que acontece) que as forças populares são as formas alienadas e que você pode discutir justamente aquilo que mantém num certo estatuto, num certo imobilismo, embora historicamente fosse uma força para manutenção de uma cultura, mas que hoje não está mais porque não está mais em andamento essa cultura. Na cultura de hoje já é uma forma repressiva e de acomodação. Eu acho extremamente delicado e perigoso. Eu acho perfeito que um documentário registre e grave o que faz parte da memória de um povo, acho fundamental. Mas quando você pega essas formas e inscreve dentro de um discurso teu que se propõe a ser uma posição crítica, é preciso ver a maneira como você está manipulando essa informação e esses dados. Aí é que não sou contra gravar um candomblé e registrá-los. Faz parte, é real, tá aí em trânsito. Agora, de que maneira se inscreve um candomblé dentro de um discurso político atual? Você não pode, de maneira nenhuma, pelo fato de um candomblé num determinado momento, no escravagismo, ter servido de uma forma aglutinadora, numa forma de uma cultura tribal e que tinha um posicionamento, de fato, de resistência para a relação com o branco, você não pode colocar isso hoje dizendo que é uma forma de resistência ao “status quo” – contra o imperialismo cultural ou uma forma revolucionária. Quando não é, o candomblé é uma forma alienante e de acomodação.

CINE-OLHO – Como detectar o conteúdo crítico de uma forma cultural e até que ponto ela é alienante? Que critérios se usar para detectar isso? Por um lado você fala que o candomblé num determinado momento serviu para uma forma de aglutinar os escravos – como até uma cultura contrária à cultura dominante e no momento ela está sendo uma coisa alienante.

RUY GUERRA – É que o candomblé, por exemplo, naquele momento não era uma coisa de superestrutura, não era uma religião – o candomblé era a própria cultura. Fazia parte de todo o sistema de vida. Era a formação, o relacionamento como mundo, com as estrelas, como desconhecido, com tudo. Hoje virou uma superestrutura, hoje virou simplesmente uma religião, quer dizer, é diferente a questão. Usar simplesmente o candomblé para a aproximação da raça... eu já acho uma forma maniqueísta de abordar um problema que você coloca em termos de raça. Uma coisa que é civil e militar. É uma visão maniqueísta do mundo. O que é que interessa que vá para a presidência o Falcão, que é civil? Não é aí a coisa – o Lott era militar que representava as forças progressistas, muito mais interessantes que o Jânio na época. Então, a gente não pode ter essa visão maniqueísta das coisas. Em termos de raça, a sua aproximação, o candomblé representava o negro e a partir do momento em que representava o negro você não pode atacar o candomblé, quando o candomblé é de fato uma forma alienante, do meu ponte de vista. O que acontece, então, é que existe a parte que, por cauda de toda a trajetória política que a gente tá inscrito, quando se volta para o povo se voltam com uma posição paternalista e que não criticam nesse nível. Aderem numa forma de, não digo hipócrita que a palavra é muito forte, mas de bom tom, sem criticar porque pode parecer mal ou pode parecer que está contra o povo e além do mais não tem outra maneira de contatá-lo e de representá-lo, então, usam essas formas. Então, esse jogo, é um jogo muito perigoso que criam novos conceitos e esses conceitos podem criar um terreno mais uma vez de acochambramento das coisas.

CINE-OLHO - Fale um pouco sobre a nova experiência de Moçambique está saindo, os últimos filmes que estão sendo feitos por lá, agora.

RUY GUERRA – Em Moçambique não existe propriamente uma produção cinematográfica. Moçambique está saindo de um estatuto colonial onde não se produzia cinema. O que havia era alguns operadores que faziam esse tipo de cinema de jornais da atualidade que eram sem a menor expressão, pois eram segundo os interesses da metrópole. Há um ano, foi fundado o Instituto Nacional do Cinema que começou agora, de fato, a fazer um cinema moçambicano. Durante esse período de tempo foram feitos alguns documentários e 3 longa que são documentários. Todos eles ainda voltados para a celebração da independência. Tem um documentário que acompanha uma equipe de filmagens iugoslavos que já tinham filmado alguma coisa das guerrilhas na época, e que acompanhou a viagem do presidente Samuel Machel na vida até a tomada do poder – uma viagem de aproximação do governo de transição. Tem outro que se chama “Um ano de Independência” que foi um série de curta metragens que foram alinhavados juntos pra comemorar o ano da Independência. O filme de Zé Celso e do Celso Lucas, “O 25”, que foi filmado também durante a independência e que pretende fazer um pequeno histórico do colonialismo e principalmente as festas da independência. Então, quer dizer, ainda não existe uma produção intensiva. Agora é que está começando a ser importado maquinaria, começando a se organizar o próprio instituto de cinema, e quadros técnicos e laboratórios. Tudo isso, então, tá numa fase ainda muito incipiente.

CINE-OLHO – Existe já uma política cultural, traçada como uma estratégia?

RUY GUERRA – Agora no III Congresso da FRELIMO, que foi o primeiro depois que a FRELIMO assumiu, existe toda uma orientação do programam do partido. Mesmo porque se tornou um partido na via socializante, de orientação marxista-leninista. A partir daí, dentro do programa cultural, há uma série de dados que informam exatamente o caminho sobre a atuação do cinema. Dentre as coisas mais imediatas e mais representativas será a recuperação de toda a memória colonial, todas as tradições orais e da cultura negra – tudo o que aconteceu ao mesmo tempo e a utilização de um cinema transformador e participante de um processo político e econômico dentro do país e levando cinema à toda a massa do povo moçambicano que está dispersa. Isso implica em toda uma política de exibição e distribuição e da reformulação de toda a estrutura tradicional que existe e é uma estrutura pequena ainda composta de 50 salas, filmes em 35mm. Porque Moçambique é um grande consumidor de filmes como quase todos os países africanos. Não tem teatros, não tem televisão em Moçambique. Em Angola tem, pouca, mas tem. Então é muito voltado para o cinema e eu gosto de citar uma coisa que é de um grande poeta português que trabalha em Moçambique ele está há anos trabalhando lá em Universidade e tem uma expressão que eu acho extremamente importante: “A África precisa tanto de imagens quanto de proteínas” – o que é verdade. Porque o cinema tem uma função e uma das orientações da FRELIMO é justamente na busca de sua própria identidade, uma identidade evidentemente diferente da que está acontecendo aqui no Brasil. É a identidade de um povo que está dentro de uma proposta socialista, no caminho para o socialismo, no nível econômico existe um potencial razoável porque foi dada uma ordem de total autonomia ao instituto de cinema no sentido da economia de sua gestão, quer dizer, o instituto está vinculado ao Ministério da Informação. Ele não depende do afluxo de capitais do Estado. Não existe nenhuma colocação paternalista de subvenção do Governo. É a própria gestão, da própria arrecadação dos filmes, no nível de taxação e no nível de distribuição e exibição, na administração desse capital. Você tem maior ou menor possibilidade de levar mais longe a sua política.

CINE-OLHO - Não vai haver dificuldade em relação à implantação de filmes no campo, nas tribos. Como fica o problema das línguas?

RUY GUERRA – Esse problema vai existir, primeiro porque o circuito que existe que ´e o circuito de 50 salas. Esse circuito obedecia à concentração populacional da burguesia branca que estava lá, inclusive das próprias tropas de ocupação. Haviam lugares em que havia dois cinemas e que eram frequentados exclusivamente pelos soldados portugueses, esses cinemas já deixaram de funcionar e o outro continua. Esse circuito de 50 salas vai ser transformado e conservado em determinados aspectos e ao tempo ampliado. O que seria um circuito paralelo e que na verdade vai ser o circuito principal. Vai ser todo em 16mm por questão de mobilidade e que vai obedecer aos novos núcleos populacionais e as distribuições geográficas: as machambas agrícolas, os centros dinamizadores, as grandes concentrações da população e no sentido do interior, através da unidades móveis e temporariamente, porque depois, numa etapa para depois ter sua própria sala é uma palavra muito aristocrática demais para ser uma sala de cinema, mas que o seu próprio ponto de visão de filmes e que vai ser muito rudimentar a medida em que vai ser no interior mas que numa determinada etapa as unidades móveis é que vão implantar esse cinema para que de fato o cinema consiga atingir quase a totalidade da população, sua meta prioritária.

CINE-OLHO – Mas você pensa que o cinema também tem, nesse caso uma função pedagógica, além da documentação da história nacional, sob outro ponto de vista. Por exemplo, no caso do documentário há possibilidades de difundir formas de organização?

RUY GUERRA – É a coisa prioritária. Além de serem levados os filmes para divertimento mesmo ou para o debate, inclusive var ser feito mesmo um jornal, um noticiário e sua Forma imediata vai ser justamente o documentário de informação que é o que gente chamaria aqui documentários didáticos, mas a palavra “didáticos” é tão saturada, como sendo um negócio chato que me repugna um pouco o terno, mas acho que didatismo não tem nada a ver com chatice. Vão ser filmes de informação técnica desde como plantar milho até proteger de profilaxia e todos os termos necessários na reconstrução do país.

CINE-OLHO – De uma certa forma tentaria substituir a televisão que não existe?

RUY GUERRA – Exato, mas é um trabalho que vai ser feito a partir do cinema. Felizmente, não existe televisão lá. Porque a TV é um instrumento maravilhoso, muito bom, eu sou vidrado em TV – acho um coisa incrível, mas acontece que a TV será sempre vinculada ao Poder e ao mesmo tempo existe, no caso aqui no Brasil, a televisão segue os interesses oficiais, não tem nenhum interesse a não ser de massificação e de alienação. Agora, dentro de uma proposta ampla seria um instrumento extraordinário. Eu acho que no caso de Moçambique com 12 milhões de habitantes aproximadamente (depende do recenseamento de 1980 pra saber exatamente) deve ter 10 milhões que nunca viram cinema e eu estou chutando – estou sendo otimista dizendo que nem 2 milhões, já viram cinema. Então, existe uma necessidade de um período pré televisivo em que esse você veiculasse uma informação maciça e horizontal para toda essa população, se isso fosse conseguido se lançando uma TV nesse sentido eu acho que havia uma possibilidade muito grande de todo um esmagamento da cultura emergente que não teria tempo de se manifestar agora. É muito violento, muito massificante, mesmo vinculado a um movimento de uma trajetória ideológica que você aprove. Acontece que mesmo assim levaria a um nivelamento que eu acho um nivelamento por baixo que criaria uma tipologia e uma reflexologia que eu acho muito vinculada ao esquema televisivo por massificação da informação. O cinema tem uma função grande dentro dos próximos anos em Moçambique antes de aparecer a TV – que um dia vai existir, justamente para poder proporcionar essa passagem para que não haja um esmagamento da cultura africana, para que ela possa ser manifestada no processo político e cultural. A TV tenho a impressão que esmagaria.

CINE-OLHO – E quanto às línguas? Você poderia falar um pouco mais sobre isso?

RUY GUERRA – Bom, isso é um problema que não é específico do cinema. Mas o cinema vai ter um papel político preponderante nesse sentido. Em Moçambique não acontece como por exemplo em Guiné-Bissau em que o crioulo é uma língua de unidade, quase. Apesar de estar oficializado o português, o crioulo está conquistando o seu lugar. A médio prazo vai ser com certeza o crioulo a língua do país. Em Moçambique existem muitos dialetos e como toda a trajetória política foi justamente para evitar lutas tribais, a política do governo foi justamente lutar contra o tribalismo português. Vai ser para muitos o aprendizado de um idioma estrangeiro, não é uma alfabetização, é o aprendizado de um idioma estrangeiro. Nessa coisa vai acontecer como acontece atualmente quando há um discurso do presidente ela fala português que segundo os lugares tem um intérprete que traduz. Então nessa fase de criação de um idioma nacional, único, vai haver essa dificuldade de linguagem, mas tem também uma parte importante nesse processo no sentido de veicular essa linguagem. Uma linguagem de base, quer dizer, há todo um trabalho a fazer com a palavra através do cinema para a formação desse idioma único. É: um problema e é uma função que o cinema tem que cumprir.

CINE-OLHO – É colocado claramente a importância do cinema revolucionário de Moçambique?

RUY GUERRA – É colocado claramente a importância do cinema no processo revolucionário e especificamente e é uma preocupação enorme do ministro da informação, que no caso o cinema está vinculado à informação em Moçambique. A utilização do cinema como meio de informação, formação e divertimento.

CINE-OLHO – Você falou que ia ser feito a política de taxação do cinema estrangeiro, pois Moçambique é um grande importador – o cinema estrangeiro não vai deixar de entrar lá imediatamente e ser substituído pelo cinema moçambicano. Como é que fica isso, então?

RUY GUERRA – Não, não há condições para isso. Um país que importa 700 filmes, não pode querer suprir a exibição com sua própria produção nacional. Porque há uma política de distribuição que está sendo reformulada e vai se reduzir para 350 filmes, a metade. Não var ser a produção moçambicana que vai suprir esse mercado. Um filme de linga metragem por ano talvez. Então vão ser mais documentários, filmes de informação didáticos, jornais de atualidade. Então, continua a importação. O que vai haver com certeza, a curto prazo, é a nacionalização da distribuição e a formação de uma rede de exibição para levar o cinema a toda uma massa do povo. A nova política de distribuição e exibição é possível não no nível da nacionalização. Eu acho que seria uma colocação idealista pensar que a gente poderia ter uma produção anual de 350 filmes revolucionários no mundo inteiro. Mesmo no acervo de toda história do cinema – encontrar revolucionários por um ano de exibições já ia ser difícil. Isso está sujeito a grandes conversas e discussões. É um ponto pacífico que vão ser filmes que representam valores que vão até mesmo ser contrários à trajetória política de Moçambique. O que acontece é que esses filmes serão discutidos, colocados, debatidos e observados e o que vai ser uma procura é não levar os filmes extremante reacionários, a não ser para uma proposta de debate e crítica. Uma vez estive conversando com os cubanos e eles me disseram “nós tivemos que roubar, com o bloqueio econômico, os piores filmes dos Estados Unidos para passar para o público, porque a partir do momento que nós abrimos as salas de exibição, nós não podíamos deixar de passar filmes. Era com compromisso da Revolução com o povo. Levar mesmo os filmes mais reacionários. Nós púnhamos nas telas procurando desmistifica-los, debatendo, mas não havia condição. Qualquer filme tinha que passar, a partir do momento em que você deixa passar”. Não pode de repente dizer – “não” só porque não há filme revolucionário – não pode fazer isso. Passavam com a preocupação de continuidade mesmo. Porque o povo exigia, quebrava a sala se não houvesse filme. Que negócio é esse – de proporcionar um cinema e depois não tem filme para passar? E: isso é verdade mesmo. Agora no caso de uma unidade móvel que tem em Moçambique em que tinham dado uma má informação pra um cara sobre a corrente elétrica, aí então quando chegou lá o povo estava e não tinha cinema, estava todo mundo protestando e foi preciso segurança, foi preciso explicar como é que ia ter cinema depois, no dia seguinte. Então, você vai ver, e não tem filme por causa da corrente elétrica, que é isso? Então, não pode. Além do mais não se pode ser por demais paternalista, não precisa tanto medo que cada filme que levam desses hollywoodianos, vai de repente... o filme não tem esse potencial de transformação. Se tivesse a gente fazia três filmes passarem em três lugares e a população ficaria imediatamente definida. Não é assim também. Agora, a massificação de valores e o contínuo marretar de ideias acaba metendo na cabeça das pessoas série de valores.

CINE-OLHO – Mas já se tem experiências de debates que aconteçam lá um debate crítico à ideologia dos filmes?

RUY GUERRA – Eu acho que é o seguinte: com a população e gente que viu pouco cinema o debate se orienta no sentido que você menos espera. É a própria realidade que determina. Um filme alienante como da Esther Willians e que se pensa que vai colocar em questão o “american way of life” – de repente o cara tá interessado em saber porque a água é azul, se põe anilina – ele tem uma preocupação que não tem nada a ver com a coisa, então a partir daí tem que haver debates e tudo o mais. Isso está começando, não se pode falar se se consegue ou não, porque está começando agora. Não há ainda uma prática disso, são ainda as primeiras experiências nesse sentido. É um trabalho duro e há um prazo. Tem que ir no vivo na realidade para testar todas as coisas.

CINE-OLHO – Há uma possibilidade das produções brasileiras independentes serem veiculados em Moçambique?

RUY GUERRA – Eu acho que há uma possibilidade de quase todos os filmes brasileiros passarem em Moçambique a não ser alguns filmes declaradamente reacionários. Reacionários até no sentido não político, no sentido por exemplo, de encarar a relação homem-mulher, não vejo nenhum interesse em passar certas comédias italianas ou pornochanchadas com valores inteiramente machistas. São coisas tão específicas que não vejo sequer muito interesse. De um forma geral a produção brasileira pode e deve passar. Mesmo filmes que possam ser discutidos e debatidos, que tragam informações necessárias e que podem servir de pretexto para debates e conversas. Eu acho extremamente rico.

CINE-OLHO – Haverá mercado para a produção independente em 16mm, então?

RUY GUERRA – Pode e há. Mas aí entra um outro problema, como o exemplo, a imagem do Brasil que não quer ser veiculada lá fora. Mas há espaço e interesse de se passar esses filmes lá, dentro dos 350 filmes que Moçambique vai precisar passar tem lugar para muitos filmes brasileiros.

CINE-OLHO – Você tem algum plano de filme agora em Moçambique?

RUY GUERRA – Não especificamente, não. O meu plano é contribuir na montagem dessa estrutura técnica e política e na reforma do sistema de exibição e distribuição, na melhor maneira de fazer esses curtas e esses jornais de atualidade e a preparação de um filme de longa-metragem sobre o processo revolucionário em geral. Mas isso é um trabalho a médio termo, não é uma coisa de imediato.

CINE-OLHO – Seria um documentário?

RUY GUERRA – Não, não seria propriamente um documentário. Seria o recolhimento de todos os participantes desse processo e o processo revolucionário do Zimbabwe, da Rodésia que tem em Moçambique. Todo o processo revolucionário africano que eu gostaria de ir documentando e ir filmando – coisas a médio prazo para um filme sobre isso.