Vinte navios...
Tive de reler esta frase, uma, duas, tres vezes, para aceitar o fato, com todo o seu horror: vinte navios, dizia.
Faz tempo que não me incluiria numa lista de ingénuos contumazes, e falo isto com tristeza, embora recuse a considerar-me um cínico. Acho que poderia, com certa exatidão, me catalogar na faixa dos que ainda não perderam a capacidade de se revoltar com o que para muitos merece apenas um confortável encolher de ombros, ou peor ainda, passa desapercebido.
Vinte navios, li.
Os jornais de cada dia nos contam, na sua anestesiante letra impressa, casos assustadores. No meio do noticiário que vem ocupando as páginas dos jornais de todos os países, sobre o êxodo dos balseros cubanos, há muita matéria para indignação.
Sou dos que acham que o direito a autodeterminação dos povos não deve ser letra morta, e num ponto, eu que geralmente não encontro muita identidade com a Igreja nos seus
pronunciamentos oficiais, concordo em género, número e grau, com a declaração do Papa Paulo 11:
",.. de acordo com a doutrina tradicional da Igreja, a única guerra que se pode considerar justa é a autodefesa".
Acrescenta:
"Os defensores do capitalismo, nas suas formas extremas, tendem a esquecer as coisas boas conseguidas pelo comunismo: os esforços para acabar com o desemprego, a preocupação com os pobres."
E mais adiante:
"Hoje em dia tenho a impressão que tudo se reduziu a uma simples dimensão econômica ou virtualmente econômica".
Palavras do Papa, matéria para uma justa reflexão, para crentes e ateus, para qualquer indivíduo preocupado com o tempo em que vive.
Vinte navios...
Sou dos que acham - com dúvidas sistemáticas - que a democracia tem um dos seus pontos fundamentais no respeito ao indivíduo e às nações. O que obriga as nações e os indivíduos que navegam sob o pavilhão democrático, a respeitar os direitos de autodeterminação. Tanto de nações, como de indivíduos.
Vinte navios...
As razões mais evidentes da atual situação de Cuba são por demais conhecidas para que eu me alongue: o bloqueio econômico, a vizinhança com os Estados Unidos, a queda do muro de Berlim, o colapso da sua economia vinculada à ex-União Soviética, o peso político da diáspora cubana radicada em Miami, a teimosia do governo de Cuba em manter os mesmos fundamentos ideológicos, e não tenho a pretensão de ter tocado em todos os pontos nevrálgicos.
Sei que a matéria é polêmica, o consenso difícil. Falar de Cuba é lidar com ódios e paixão. Sou de uma geração que se vocacionou a admirar a Cuba revolucionária e os seus ideais, e tive a sorte de conhecer de perto o povo cubano, ao longo dos anos, o que mais aguça a minha sensibilidade para o momento que atravessa.
Quem o quer conhecer na sua complexidade, de dentro pra fora, sem álibis nem maquiagem, não perca a oportunidade de ver o magnífico filme do grande cineasta cubano Tomas Gutiérrez Aléa, "Morangos e Chocolate".
Ajudará a compreender Cuba, e também os seus balseros.
Vinte navios...
O mar das Caraíbas tem estado coalhado de balsas.
Nos últimos dias as autoridades norteamericanas parecem ter chegado a um acordo com o Governo de Cuba para pôr em prática a cota de emigração de cerca de vinte mil cubanos-ano, até então apenas no papel, em troca do controle, por parte das autoridades da ilha, do desesperado fluxo migratório.
O fato imediato é que os cubanos, antes considerados exilados políticos, são agora rotulados de emigrantes econômicos, logo sem direito ao visto de permanência até então concedido automaticamente pelos Estados Unidos.
Um passo em frente? O ponto de interrogação não deve estar apenas na minha mente.
Esperemos, no entanto, que este primeiro entendimento entre os dois governos, seja o preâmbulo de uma próxima discussão bilateral alargada, em que esteja na pauta o anacrônico e politicamente inaceitável bloqueio econômico.
Vinte navios...
E os balseros?
As esperanças de cerca de 15000 deles estão encafuadas na base norteamericana de Guantánamo. Livres e presos, livres de estarem presos, segundo o estatuto que os rege. Livres, por estarem em solo considerado norteamericano, e se assim o desejarem, podendo voltar a Cuba, onde já estão sem estarem. Presos, por estarem confinados numa base naval, na própria ilha de onde fugiram, sem direito ao solo continental norteamericano com que sonharam, após uma odisséia marítima desesperada.
Outros miles seguem para o Panamá, que os aceitou às custas do erário norteamericano.
Sete, estão em terrritório brasileiro. Em Salvador, Bahia.
Vinte navios...
Vinte navios são a imagem cruel do mundo capitalista.
Vinte navios foram os que cruzaram a balsa desses sete cubanos perdidos no mar a caminho de uma esperança, e que se recusaram a recolhe-Ios, até que o cargueiro mexicano "Mérida", rumo à Bahia de Todos os Santos, aplicou as leis do mar e da solidariedade mais óbvia, estabelecida desde os remotos tempos de outras piratiras.
No deserto, não se recusa água a quem tem sede. No mar, não se recusa auxílio a um náufrago.
Ou um balsero, emigrante econômico ou refugiado político, não é um ser humano à deriva?
Vinte navios ...
Vinte vergonhas sobre as águas, para todos nós, irremediavelmente ligados nesta nossa condição (dita) humana.
Ruy Guerra
Em Tempo
1. A entrevista do Papa Paulo 11 foi dada ao jornalista Jas Gawronski, editorialista de "La Stampa", e lida numa retranscrição feita no jornal português "O Público".
2. A noticía dos vinte navios foi matéria da reportagem de Biaggio Talento, neste mesmo "Estado de São Paulo", sob o título de "Miséria da Bahia assusta balseros", no passado dia 4 do corrente mês.
3. "Morangos e Chocolate" foi ajudado na sua realização por Juan Carlos Tabío, num gesto de solidariedade, frente a uma grave doença que está sendo levada de vencida por Tomas Gutiérrez Aléa, querido "Titón".