Eu vi a Copa de longe com a doce ilusão de estar lá, pertinho de tudo e todos. Como centenas de milhões de leitores e espectadores do mundo inteiro.
Respirei Copa, bebi Copa, digeri Copa, sonhei Copa e conjuguei Copa em todos os verbos.
Como centenas de milhões de leitores e espectadores do mundo inteiro.
Me tornei íntimo de marroquinos, croatas, escoceses, nigerianos, franceses, alemães, soletrei nomes arrevezados, aprendi geografia, história, e naveguei em saudosos passados de outros momentos de euforia.
Como centenas de milhões de leitores e espectadores do mundo inteiro.
Enfrentei a contragosto a contagem regressiva dos cinco, quatro, três, dois, um... Agora não como centenas, mas como dezenas de milhões de leitores e espectadores brasileiros.
E cheguei ao dia do zero, tenso, nervoso, ansioso... e otimista.
Não botei salto alto, preparado para assistir ao ritual que iria encerrar com chave de ouro a Era Dunga. Tratava-se apenas de uma questão de horas, e de alguns gols, implacáveis, escritos no futuro, já preparados no imaginário de cada um. Faltava apenas serem servidos.
Eu, como dezenas de milhões, estava pronto para vomitar as incertezas e angústias dos últimos quatro anos do dia-a-dia, explodir o grito sufocado na garganta, me espojar no êxtase anunciado. E, sacrifício supremo, preparado para engolir quem se tinha anunciado como se tendo de engolir.
O resto da história, vocês conhecem.
Mas antes do resto?
Pensava, como dezenas de milhões, que sabia tudo, ainda que discordasse de muitos. Agora, hoje, neste instante, sei apenas que de nada sabíamos.
A imprensa escrita, falada, radiofonizada, televisada, mediunizada, insone, alerta, analítica, atenta a tudo e tantos e todos, cheia de esquemas, e cifras, e estatísticas, e fotos, e romances, diz o que esperamos ver e ouvir, o que vende, e pouco do que devemos saber. Os fatos (à velocidade da luz) chegam até nós, para logo serem (à velocidade da luz) desmentidos, e logo (à velocidade da luz) reconfirmados, num atordoante iôiô.
E, afinal, o que havia para saber no dia zero, que já não soubéssemos - fora o resultado do jogo?
Se o velho Nélson Rodrigues estivesse agora aqui iria certamente evocar Sófocles e Eurípedes, com suas togas e sapiência, e nos lançaria na cara os urros do óbvio, ao qual teimávamos fechar os olhos: que nunca seríamos pentacampeões, como eu e dezenas de milhões pensávamos ser, mas desesperadas criaturas penduradas nas chuteiras de prata de um menino-atleta, bom de bola, manipulado por estruturas de poder as mais variadas, das mais ínfimas às mais dominantes.
Um menino convulso, que teve de olhar a morte de face para poder se ver, em toda a fragilidade de sua condição humana. Um menino tímido banhado a milhões de dólares, banhado a milhões de louras, banhado a milhões de imagens, banhado a milhões de esperanças, tentando desesperadamente não se afogar.
Enquanto isso, dezenas de milhões, esportivamente (eu diria, generosamente) saúdam o vice-campeonato - não eu, e certamente muitos outros. Os milhões de banhos de tudo nos dão direito ao título máximo. Vice, em futebol, é como cunhado: não é parente, nem prêmio. Não podem sucatear o sonho.
Alguns, esportivamente (eu diria, espertamente), procuram desculpabilizar os jogadores de prata e assim, no bolo, fugirem das responsabilidades. Os modernos gladiadores já tiveram a derrota por castigo. Não merecem mais penas.
Mas há contas a prestar ao sonho de um povo inteiro: muitas mentiras, muitas omissões, muitos interesses econômicos, muitos patrocínios, muitas Nikes, muitas cumplicidades, muitas ganâncias - têm de ser explicadas.
A CBF , como órgão máximo do futebol brasileiro, não pode simplesmente passar a esponja e levantar a bandeira do penta asiático, como se ela se purificasse magicamente com a passagem do milênio. Nem querer, hipocritamente, tudo explicar pelos pés de barro do menino-ídolo e suas chuteiras de prata e dor.