Ruy Guerracronicas

Despedida
Ruy Guerra




Quando cheguei em casa, arrasado, jurei para mim mesmo que não escreveria sobre o assunto e tentei cumprir minha palavra.

Duas tentativas falhadas, sobre dois temas diferentes.

Olho o relógio e constato que já é quase meia-noite e a hora limite para fechar a matéria se aproxima perigosamente. Respiro fundo e assumo, que neste momento, não sou capaz de escrever sobre outra coisa.

Recomeço, pela terceira vez.

No cemitério um funcionário me indicou uma alameda pela qual devia seguir. Apertei o passo e caminhei por entre as tumbas. Alcancei o mausoléu e me surpreendi com a presença de apenas uma vintena de pessoas. Soube então que o cortejo vinha a pé do Centro da cidade onde o corpo tinha sido velado e ainda estava no Catete.

Eram exatamente quatro e cinqüenta e cinco e o sol batia forte.

Olhei do alto o imenso campo de lápides e tudo me pareceu tristemente sujo. Admiti ser uma impressão falsa até que ouvi alguém a meu lado se indignar com o estado geral de conservação do cemitério.

Me preparei para a longa espera.

Num cemitério tudo parece adquirir um significado diferente. As palavras mais anódinas, os gestos mais simples, tudo ganha uma dimensão escorregadia.

Um pouco afastado um amigo meu fumava, o cigarro ingenuamente escondido na concha da mão. Era como se fumar, ali, ainda que ao ar livre, fosse a manifestação de um prazer fora de propósito. Achei absurda a falta de coragem de assumir seu gesto, que afinal de contas não tinha nada demais. Enquanto pensava isso notei que eu não tinha reacendido a guimba de charuto que trazia hipocritamente esquecida entre os dedos.

Mais adiante, perto de inúmeras coroas de flores, um grupo de pessoas sorria, numa conversa sussurrada. Mais uma vez me senti preconceituosamente agredido, como se um veio de vida não tivesse o direito de se infiltrar no sofrimento. Sabia que era uma tolice o que pensava, mas mesmo assim pensava essas tolices com as quais discordava.

Perto da entrada do mausoléu me chamou a atenção a frágil silhueta, vestida de negro. No rosto macerado por uma dor que eu presenciara em toda sua plenitude na noite anterior, no velório, havia agora um irremediável cansaço, e isso me trouxe um pouco de serenidade. Foi então que descobri como me encontrava tenso, os nervos à flor de pele.

Já noite feita, uma mulher quase sem voz, de tão rouca, resmungava contra os mosquitos que começavam a atacar quando gente foi chegando, cada vez mais numerosa, anunciando a aparição do cortejo fúnebre, que despontou finalmente rumo ao mausoléu.

A batida pobre e monocórdia de um bumbo me fez lembrar que tinha lido algures que ele havia pedido para ser enterrado com música de Bach. Quem sabe isso aconteceu antes do cortejo ter tomado o seu destino final?

Fiquei num canto, isolado, e enquanto escutava o discurso de adeus fiquei me perguntando por que havia anulado uma viagem para estar ali, eu, que tenho um violento horror a este ritual. A resposta pode parecer óbvia, e essa obviedade as palavras do orador expressavam com eloqüência: um verdadeiro grande homem tinha morrido.

Mas para mim não era uma justificativa suficiente, ainda que verdadeira. Minha homenagem não exigia minha presença ali, minha homenagem eu a prestava dentro de mim mesmo. No entanto eu tinha sentido necessidade de ir até aquele último encontro, que nem encontro era, tinha tido necessidade de viver aquela solidão até à última gota.

Quando alguns militantes exaltados começaram a interromper o orador e a tentar instrumentalisar a cerimônia me irritei e senti que sobrava. O mais anonimamente possível furei com dificuldade a compacta multidão e retomei o longo caminho de volta.

Só, na noite, por entre as tumbas, com minhas confusas emoções e minha falta de palavras.

Adeus, Darcy.