Ruy Guerracronicas

O fantasma da homossexualidade
Ruy Guerra




Garoto ainda, na minha cidadezinha, havia o "Austríaco".

Nós às vezes o vislumbrávamos aos sábados, quando íamos à Baixa, para as matinés de cauboiadas. O olhávamos à distância e o seu apelido era sussurrado num misto de medo e curiosidade.

O "Austríaco" era um homem maduro, extremamente magro, terno sem gravata, um chapéu de feltro de abas largas desabado sobre o rosto. Nunca soube nada dele, nem de que vivia. Sabia apenas o que todos sabiam: que era o homossexual da cidade.

Claro que a palavra homossexual não era pela qual o conhecíamos. No caso a palavra usada era de "paneleiro", termo ainda corrente em Portugal, e que nunca compreendi a origem. O linguajar popular é frequentemente hieroglífico.

Para a garotada excitada pelos tiroteios de Bill Elliot ou Buck Jones era uma emoção extra descortinar o "Austríaco", e algum mais afoito, soltava o grito de insulto e se escondia no grupo, que ria, excitado pela aventura.

Lembro que o "Austríaco" nunca reagiu.

Mais tarde, já adolescente, conheci outro homossexual. Era também extremamente magro, quase esquelético, mas aí terminavam as semelhanças com o"Austríaco". Andava sempre em mangas de camisa, uma expressão da época para dizer que não usava paletó. Sua homossexualidade era conhecida -de todos, mas ninguém o xingava, por ser um respeitado poeta.

Era uma figura frágil, de fala mansa, e o dia em que falei com ele pela primeira vez me surpreendeu o intenso azul de seus olhos. Foi no bar do cinema "Scala", que ele sempre freqüentava, e guardei com emoção as palavras generosas sobre um dos primeiros textos que publiquei no "Jornal de Domingo", na secção infantil. Eu devia ter uns treze anos de idade, e deslumbrado por merecer a atenção de um intelectual de tal gabarito, não sabia como lidar com os elogios e com sua notória homossexualidade.

A partir daí, sempre que nos cruzávamos, ele me saudava gentilmente e eu me envergonhava - ante os olhares oblíquos de meus amigos -, do que agora me orgulho: de ter conhecido o maior poeta moçambicano da época, hoje um nome consagrado da língua portuguesa. Chamava-se Reinaldo Ferreira e sua poesia me acompanha. Lamento não saber de cor todo o poema "Receita de herói" e não ter à mão nenhuma antologia para dar uma dimensão de sua grandeza. Fico devendo.

Ao longo da vida conheci e me tornei amigo de muitos homossexuais, famosos ou anônimos, assumidos ou que procuravam esconder prudentemente a sua condição. Não vou dizer que todos eram pessoas maravilhosas, mesmo por que não creio que a opção sexual seja suficiente para definir o ser humano. O que acredito é que se a maioria dos homossexuais que conheci eram pessoas sensíveis e bem informadas, mais condescendentes e com grande sentido de humor, isso se devia provavelmente à necessidade de sobreviver numa sociedade que os desprezava.

Não pretendo aqui fazer uma análise do comportamento homossexual, até por que o tema nunca me interessou muito. Sempre o aceitei como um dado da realidade, ainda que melancolicamente me descubra, por vezes, manifestações culturais preconceituosas. A diferença estigmatiza e é difícil aceitar o Outro, seja ele negro, judeu, homossexual, rico, bonito, inteligente, famoso...ou argentino.

Hoje, num importante jornal carioca, um leitor se revoltava com a declaração de amor de um conhecido ator pelo seu companheiro, publicada há dias. Indignado, falava da "imoralidade de nossa imprensa" e "da tristemente famosa amoralidade do povo brasileiro" .

Não pretendo entrar em psicologismos baratos mas se odeia o que se teme e frequentemente se teme o que nos fascina. A violência contra os homossexuais, e é muita, em palavras e atos, geralmente tem sido praticada por aqueles que não resolveram sua própria sexualidade.

Algo que marca este século, ainda que com exageros e comercialismos, é o importante debate sobre o sexo, antes tabu. A homossexualidade - masculina e feminina - ainda que importante, é apenas uma face desse debate. E indignação por indignação, me revolto contra a negação do direito de cada um escolher seus caminhos de felicidade, ainda que a contracorrente da maioria.

O que entristece - e assusta -, é que já na virada do milênio, uma simples declaração de amor possa suscitar tanto ódio.