Quando o trem entrou silenciosamente na gare naquele 2 de Fevereiro de 1895, o pequeno público presente gritou assustado. Foi em Paris, na primeira sessão de cinema de que se tem memória, e poucos dos assombrados espectadores tiveram consciência de que eram protagonistas de um grande momento da história do homem.
Nem Louis Lumière, o inventor do cinema, achava que a sua descoberta ia além de uma simples curiosidade de feira.
Não me lembro quando fui a uma sala de cinema pela primeira vez, nem que filme estava sendo projetado e embora isso não tenha a menor importância, sinto essa lacuna da memória com uma certa tristeza. Gostaria de poder afirmar que foi vendo um filme de Buster Keaton - que até hoje reverencio como um dos maiores cômicos e diretores de todos os tempos -, mas não me importaria que tivesse sido do Gordo ou o Magro, ou até um desclassificado filme de terceira categoria, desde que me lembrasse, o que não é o caso.
Mas ao longo da vida fui devorando vorazmente filme após filme, me alimentando de imagens, em preto e branco, coloridas, mudas, sonoras. E o meu conhecimento do mundo deve muito a essas vidas que passei nas salas escuras, os olhos fixos na tela, onde pessoas e coisas desfilavam diante de mim emoções que me foram moldando naquilo que sou.
Fui convivendo com as sombras e a luz, e para ser sincero, nem sempre soube onde estava a fronteira que separava a ficção da realidade. Esse universo me fascinou de tal maneira que sem que soubesse exatamente quando, decidi que um dia iria também contar histórias e dizer coisas com essa linguagem que tanto me seduzia.
Os anos foram passando e eu tentando realizar esse sonho de infância. Sem intenção de blasfemar: nada está tão próximo dos poderes de Deus que criar uma história, com seus personagens e suas emoções, desejos, desesperanças.
Hoje, tantos anos passados desde aquela longínqua sessão histórica do final do século passado, tantas e tantas imagens consumidas no mundo inteiro - a quantidade acrescida pela proliferação das telinhas de televisão - poderíamos pensar que a imagem de alguma forma se tivesse exaurido, banalizado. Seria lícito pensar que tivéssemos criado algum anti-corpo que nos imunizasse do seu contato permanente e sistemático. Num momento em que a tecnologia nos empurra para a virtualização, em que o espetáculo toma frequentemente o lugar da realidade e se confunde com ela, em que a computação gráfica é capaz de filmar ao vivo os dinossauros do passado, em que a própria genética viabiliza os clones - a imagem da realidade na própria realidade -, o poder das imagens poderia ser questionável.
Mas bastam algumas imagens diretas e sem qualquer sofisticação, para derrubar qualquer argumento nesse sentido. Basta apenas a representação direta, sem qualquer manipulação, de uma realidade brutal, para que toda a força das sombras e da luz arranquem do espectador a emoção e a certeza do fato, que em palavras, poderia não ser sentido, e comodamente negado. Aconteceu com as imagens do espancamento de Rodney King nos Estados Unidos, aconteceu com os desmandos da PM em Diadema, São Paulo, e na Cidade de Deus, Rio de Janeiro.
Estamos longe do sobressalto maravilhado dos surpresos espectadores parisienses vendo o trem avançar sobre eles. O nosso susto, desencantado, não é o da surpresa, mas a violenta tomada de consciência daquilo que já sabíamos por palavras, e que as imagens nos obrigam a ligar diretamente à emoção, à indignação, sem álibis.
Imagens que escancaram o horror, e que com a sua triste verdade irretorquível, não admite omissões.
Nem a das autoridades, nem a nossa.