Ruy Guerracronicas

Lola Montes venceu
Ruy Guerra




Tenho sempre de fazer um grande esforço para me convencer que Max Ophuls é um judeu alemão e não um conde austríaco.

Seus filmes se passam em luxuosos salões, alcovas com lençóis de seda, candelabros, espelhos, magníficas mulheres, em uma magnífica Viena fim de século. Quando "Lola Montes" estava sendo feito eu era estudante de cinema em Paris, a grana curta e o apetite voraz. Para ganhar uns trocados que permitisse algum jantar fora do execrável bandejão dos restaurantes universitários, aceitei entusiasmado a proposta de meu amigo Sílvio Autuori para entrevistarmos realizadores famosos. Descolamos uma máquina fotográfica, um enorme gravador e devidamente credenciados pelo "IDHEC" e "Manchete", lá fomos nós, com um imenso questionário e o nosso francês macarrônico.

O encontro com Max Ophuls foi particularmente emocionante. E uma lição.

Eu gostava de seus filmes, mas o que mais admirava era a maestria de seus movimentos de câmera. Excluindo Orson Welles - e estou pensando em "Magnificent Ambersons", de 1942 - nenhum outro nome da época me vem de imediato que possa ser lembrado pelo corpo-a-corpo da câmera com os personagens.

O que talvez justifique ainda mais esta associação de Ophuls com Welles - para lá da temática ou das obsessões de cada um - é o evidente prazer comum de morder o cinema, na jugular. Welles com glutonaria e uma certa brutalidade; Ophuls com delicados caninos de cristal.

A primeira (e única vez) que vi Ophuls em carne e osso foi no estúdio de som em que mixava "Lola Montes".

Na tela imensa, Martine Carol, grande estrela da época.

Ophuls nos recebeu com um educado sorriso. Era um homem pequeno, calvo, impecavelmente vestido. De imediato me chamou a atenção o rebenque com o qual batia de vez em quando na perna, nervosamente, com um ruído seco. Um objeto que não se espera de quem está fechado longas horas misturando sons, palavras e música, frente a uma projeção que vai e vem, incessantemente.

Nunca tinha estado antes numa sala de mixagem e quando Ophuls nos pediu que aguardássemos a seu lado o fim do trecho em que trabalhava, fui tomado de uma grande emoção. Ainda hoje, sempre que entro num auditório para essa deslumbrante etapa final em que pela primeira vez se sente o filme, relampeja a imagem daquele homenzinho e seu chicote, que teve a percepção da importância iniciática que revestia para dois ingênuos estudantes de cinema a entrada naquele espaço sacrossanto.

Estaria mentindo se dissesse que tenho presente todos os detalhes da longa entrevista. Mas recordo um momento - sem que me lembre o que o levou a essa intempestiva declaração - em que disse algo que se sentia que era uma convicção profunda que tinha necessidade de passar adiante. Recordo que me pareceu esquemática a analogia que usou, em contradição com o universo de seus filmes e a imagem que eu fazia dele mesmo; recordo que fiquei um tanto chocado com aquela linguagem de um marxismo primário, vinda de um aristocrata, ainda que falso; como recordo que fiquei lisonjeado por ser tratado como um homem do mesmo ofício.

Disse, num ímpeto: o realizador é o representante do povo. O produtor representa o capital. São interesses opostos. Sempre.

Logo em seguida se calou e o rosto tenso se abriu num afável sorriso.

A entrevista, com a enfática e um tanto extemporânea confissão, tinha terminado. Silvio e eu saímos um tanto zonzos, ainda que fascinados pela inteligência de Ophuls, unicamente comparável, pela nossa experiência própria, à de Jacques Tati. Pouco tempo depois Ophuls teria o seu filme amputado e exibido com quase uma hora a menos. Desgostoso, morre dois anos depois, aos 55 anos, sem nunca mais ter filmado.

Existe agora a possibilidade de ver "Lola Montes" na versão integral, restaurada. "Mais fortes foram os poderes do povo", Max .