O meu velho amigo Miguel Torres, que nunca morrerá enquanto eu estiver vivo para conversar com ele, era um homem de poucas palavras e semblante carregado. Quem o pouco o conhecia podia pensar que se tratava de um ser soturno e mal humorado. A não ser se o flagrasse nos seus repentinos sorrisos, retumbantes.
Miguel, baiano de Juazeiro, que antes de se tornar ator e roteirista de cinema andou embarcado por mares de que nunca me falou, tinha três paixões.
A primeira, uma atriz casada - com quem fizera par amoroso num filme -, a quem nunca ousou declarar seu amor.
- Tem marido, marido se respeita.
Eu tentava demonstrar que o sujeito era um oportunista, desprezível, que corria atrás do primeiro rabo de saia que aparecia. O rosto carregado, Miguel sacudia a cabeça, rigoroso:
- Como é que eu vou amar uma adúltera? - dizia, se debatendo no impossível dilema. Já nos anos sessenta a palavra adúltera só existia nas canções de Lupicínio. Mas a verdade é que Miguel tinha uma certa vocação para personagem de bolero. Concluía, inseguro, apesar dos olhares esparramados da moça, cheios de significados pecaminosos:
- E nada diz que ela me ame.
Miguel morreu com essa paixão engasgada no peito devido a seus inexpugnáveis códigos de honra.
Após a sua trágica morte, a primeira vez que a vi, ela me abraçou com força, os olhos se encheram de lágrimas na confissão muda do que eu e todos os amigos de Miguel sempre tínhamos sabido, menos ele: que o amava com uma intensidade pronta para todos os desvarios.
A outra paixão de Miguel era o cangaço.
Autor de um belo roteiro "Três cabras de Lampião", dirigido na época por Aurélio Teixeira, tinha vários argumentos sobre o tema. "O ABC da vingança", que tinha começado a escrever para que eu o transformasse em filme, era a aventura de um menino educado para matar o assassino do pai. Quando poucos anos atrás li "Ontem à noite era Sexta-feira", com pontos de contato com a história de Miguel, fiquei imaginando se de alguma forma ele baixou em Minas e ficou soprando suas obsessões no ouvido de Roberto Drummond . Uma mente racional vai concluir que se trata de uma simples coincidência, mas ainda assim prefiro acreditar que Miguel está de alguma forma envolvido, não me perguntem como, sem que Drummond saiba disso. E que esse livro é meu.
Tudo o que sei sobre o cangaço e o nordeste aprendi com Miguel, em intermináveis caminhadas pelas noites do Rio e nas andanças de jipe pelos sertões. Nesses momentos a palavra lhe chegava fácil, as imagens povoavam seu imaginário e os olhos pardos brilhavam como os de um felino.
Miguel tinha um rosto talhado à faca, a silhueta magra, o que lhe valera o convite de Nelson Pereira para interpretar o Fabiano de "Vidas secas", papel que recusou para me acompanhar como assistente de direção de "Os fuzis", que ajudou a escrever.
Não vou contar o acidente que o levou a morte, memória demasiado dolorosa, com a qual convivo dificilmente. Como com Miguel tudo parece que tinha de ser paradigmático, foi num 31 de dezembro já distante, exatamente na passagem do ano, lembra Norma?Todos os amigos choraram por ele e eu, egoísta, até hoje choro por mim, pela sua falta.
A terceira paixão de Miguel, dita assim parece piegas, era pelo cinema brasileiro. Era uma paixão serena, forte, confiante.
Lembro uma noite em que caminhávamos rumo à "Fiorentina" então o ponto de encontro de cineastas e artistas e Miguel remoia em silêncio uma péssima crítica sobre "Os cafajestes", acabado de ser lançado, que Miguel tinha entusiasticamente ajudado a escrever. De súbito ele parou e o semblante taciturno se iluminou:
- Não faz mal - disse alegremente.
Como eu não compreendesse a razão de tão brusca mudança de sentimentos, fechou:
-Tem coisa melhor que mulher, tem? E há quem não goste!