Ruy Guerracronicas

As portas da poesia
Ruy Guerra




Não sei por que se lê poesia.

Não sei por que se escreve poesia.

Não sei também, do muito que não sei, quando foi que um dia o homem descobriu a poesia, como tal.

Qual terá sido o primeiro verso, aquele que deu origem à poesia, aquele que a batizou. Arrisco um verso de amor, o óbvio. Mas por que não um verso filosófico, metafísico? Por que não um épico? Não vejo pistas e deve have-Ias. Seria preciso rastrear, garimpar o tempo, farejar o passado e não tenho a vocação nem a persistência para tal, apenas um preguiçoso interesse. O mais longe que sei ir é até a minha quarta prateleira a contar debaixo e consultar o "Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa" de José Pedro Machado, na sua 6a. edição de 1990, pela Livros Horizonte- Lisboa. Nele as palavras poesia, poema, poeta, parecem remeter a raízes gregas, em que o que está mais presente é "o ato de fazer, fabricar" e no sentido de versejar "só a partir de Hesíodo e de Píndaro".

Não tem a menor utilidade mas sinto que devo dizer que é uma edição de capa vermelha e letras douradas. Esta exigência vem talvez dos longes da infância, quando olhava fascinado uns imensos volumes, igualmente vermelhos e de letras douradas, das "Fábulas de La Fontaine", profusamente ilustrados a bico de pena por Gustavo Doré, que meu pai guardava ciosamente trancados a sete chaves, num armário de portas de vidro. Um suplício para a minha imensa curiosidade de criança, para quem os mistérios da leitura ainda não tinham sido desvendados, e que era aguçada pelas leituras que meu pai fazia de tempos a tempos. Leituras que marcaram para todo o sempre o meu imaginário, tanto pelas fábulas que me eram lidas e explicadas, como pelo encantamento da sua voz.

Foi com grande emoção que há três anos minha irmã me ofereceu esses dois volumes e hoje, neste exato momento, tenho-os aqui sobre o meu colo, obrigando-me a escrever de viés. Fui compulsivamente busca -Ios, para vos atafulhar de informações exatas, de uma precisão inútil, mas necessária para a minha emoção. Folheio as páginas amareladas e deparo com a antiga ortografia em que "ilusória" tem dois eles, como com dois eles a belleza parece mais bela; symbolo e estylo com ipsilon parecem também mais próximos de seu significado, e o agá torna o distrahido mais errante. Numa caprichada letra fina, de maiúsculas floreadas meu Pai assinou seu nome completo e orgulhosamente colocou a profissão de "Pagador dos C. de Ferro de Lourenço Marques". Em baixo, o local da compra e a data: Lisboa-1935. Eu tinha 4 anos de idade.

Cada volume tem 27 cm de largura por 37 cm de altura e pesa dois quilos (acabo de os medir e pesar). Para mim, então, medidas e pesos descomunais.

O meu olhar de hoje se surpreende que a edição tenha sido feita em Paris, na "Imprimerie de La Societé Anonyme de Publications Périodiques "- 13, Quai Voltaire e vendido por David Corazzi, 40, rua da Atalaya, Lisboa e José de Mello, 40, rua da Quitanda, Rio de Janeiro. A data da edição, que presumo ser a primeira uma vez que não há nenhuma outra indicação é de 1886.

Abro ao acaso, e leio em silêncio para ter a ilusão de resgatar na memória a voz de tenor de meu pai e sua imagem inflamada, os olhos muito azuis brilhando de um entusiástico prazer, o esquerdo, estrábico, perdido num horizonte próprio:

E o mísero animal, com as pupilas foscas, Invectivava triste o seu terrível norte

Por lhe ter conferido a desgraçada sorte

De, com seu próprio corpo, alimentar as moscas.

Eu nunca soube explicar o que é a poesia e agora, os anos já passados, sei que vou morrer sem o saber. Mas essa ignorância não me aflige, antes me abençoa.

Eu sei que as portas da poesia me foram para sempre abertas naqueles inesquecíveis serões paternos, e a presença desses dois tomos de capas manchadas são o testemunho concreto do meu eterno deslumbramento.