A minha paixão pelos gordos não vem da proverbial bonomia, que acho mentirosa, uma vez que já encontrei gordos de um mau caratismo esquelético.
Os gordos sempre exerceram sobre mim um incontrolável fascínio, como as planturosas mulheres dos quadros de Auguste Renoir, ainda que tenha um santo horror à idéia de engordar. Talvez por achar que é preciso grandeza, para assumi-Ia. O movimento, no gordo, tem um encanto especial. Walt Disney deve ter compreendido isso, quando no seu filme "Fantasia" ilustrou a "Suite Quebra nozes" de Tchaikovsky, com ágeis hipopótamos.
Um de meus sonhos de cineasta é filmar um samba ou uma salsa em que os bailarinos sejam todos descomunais, homens e mulheres. Esta minha obsessão me levou ao ponto de já ter sugerido a alguns diretores de cinema amigos, interessados em realizar um musical, de incluir essa cena - para que eu dirija. O gordo, dançando, além do movimento imediato, traz no corpo uma série de contratempos, que lhe dá um suplemento rítmico inimitável. Compreendo que esses movimentos da gordura, para alguns, possa parecer grotesco, mas esse remelexo que só o gordo em movimento pode proporcionar é para mim de uma beleza insuplantável. Por vezes fico imaginando o que seria um Carlinhos Jesus, com seu samba no pé, seu sorriso de tantos dentes... e 120 quilos de saracoteio! Nos desfiles de Escola de Samba, passado o interesse efêmero da nudez das passistas esculturais, as que me chamam a atenção são as passadas de peso, com o excesso de gordura sambando por conta própria, como um eco do passo.
Ao longo das últimas semanas, intermitentemente, falei de gordos no cinema, e hoje vou botar um ponto final no tema. Não que tenha esgotado o assunto, longe disso, mas por que desde o principio pensava em escrever uma única crônica, com o titulo da de hoje, e me deixei levar.
Neste derradeiro parágrafo, antes de entrar na carne viva do mote (e por desencargo de consciência), quero lembrar dois gordos pequeninos, atores de versatilidade e talento, responsáveis por grandes momentos de cinema: Edward G. Robinson e Thomas Mitchell.
O meu gordo definitivo não tem a menor originalidade. O seu nome é uma lenda no universo cinematográfico e poucos o desconhecem: Orson Welles.
O primeiro filme que vi dele - e seu primeiro filme também -, foi "Cidadão Kane", que passou a portas abertas numa sessão não-programada, por ter sido proibido pela censura em Moçambique. Tive a sorte de passar pela entrada do cinema "Scala" e entrar - tinha eu os meus 13 anos de idade. Só muitos anos mais tarde fui me deslumbrar com a narrativa do filme e outras virtudes sutis, mas recordo o impacto da sua projeção - e para quem não se vangloria de uma memória fiel -, recordo a experiência com uma nitidez inquietante. Já então eu era um cinéfilo obstinado e senti que estava presenciando algo de inteiramente novo, completamente fora dos Sabus, Esther Williams, Errol Flynns e seus universos pré-fabricados de falsas Bagdás, piscinas paradisíacas e românticos piratas imbatíveis.
Melhor que ninguém Martin Scorsese definiu a sua importância como diretor, quando declarou que Orson Welles "inspirou mais gente a ser diretor cinematográfico que ninguém na história do cinema", Mas não é este Orson Welles que eu quero aqui rememorar, e sim aquele jovem de vinte e poucos anos de idade, elegante e sedutor, que naquele mesmo filme interpreta um personagem da sua idade, e que ao longo da história envelhece e morre... imensamente gordo.
Tenho dificuldade de adjetivar o que sinto ao ver o octogenário que ele criou no filme... exatamente igual ao que ele se tornaria na realidade, décadas mais tarde. Em que vontade, em que inevitabilidade, em que coincidência, em que espelho do tempo, o moço e esbelto Orson Welles de então, foi capaz de se ver, com tamanha exatidão, um gordo definitivo?