Ruy Guerracronicas

A idade e o sonho
Ruy Guerra




A idade, geralmente, só traz mazelas.

O corpo, como qualquer máquina, exige cada vez mais cuidados e atenções e tem tendência a ratear. Às vezes, uma pane inesperada nos deixa no meu do caminho, seja ela qual for.

Além do mais, como se não bastasse, vivemos numa sociedade em que sempre foram cultuados os valores estéticos da juventude. Vive-se a contradição de querer viver até uma idade avançada, sem deixar de ser jovem .

A sociedade ocidental, que tem a seu crédito importantes contribuições tanto na ciência como nas artes, desenvolveu a sua relação de conhecimento com o mundo externo numa conceituação de espaço e tempo que tornou dolorosa a noção de princípio e fim, de nascimento e morte. Para responder a esta angústia permanente floresceram as religiões, com suas idiossincrasias e diferenças, mas identificadas no propósito essencial: o da promessa da eternidade, a preços e moedas distintos. Apavorado pela efemeridade da vida terrena, o ser humano se agarrou a essa tábua de salvação com todas as ganas do seu desespero. Mas a embalagem da eternidade não foi bem confeccionada, pelo menos até ao momento. As religiões ocidentais não souberam, ou talvez não quisessem, esvaziar o terror. Me permitam a pergunta: sem o medo da morte, do fim definitivo do indivíduo, a idéia de Deus não se dilui? Deus é fundamentalmente uma resposta a uma questão intelectual da origem do Universo ou uma resposta a angústias existenciais do ser humano?

Mas derivo. Me interessa agora mais o culto e o ritual da morte, que essas indagações fundamentais, controversas, polêmicas, delicadas, uma conversa que sempre tende a exacerbar os ânimos.

Ainda que habitados por uma profunda convicção da existência de uma outra vida,melhor e eterna, a renúncia à sofrida vida que vivemos, é um ato de dor. Ninguém ¬pelo menos a imensa grande maioria - passa alegremente" desta para a melhor", de coração aberto e sorridente. Nem os que ficam vêm nessa partida um consolo suficiente para justificar a perda de alguém que amam. Esta passagem é um viveiro de medos. Medo da partida, da travessia, da eventual chegada, das surpresas do além, da incerteza do merecimento que permita certezas. Abstraídas as dores físicas, variáveis segundo cada caso. Depoimentos vários de quem já foi e voltou (que foi considerado morto e retomou o contato), são coincidentes num imenso bem estar durante essa curta estadia, habitada de luzes e serenidade. Se assim é, ou for, algumas esperanças são permitidas, ainda que não referentes a nenhuma eternidade não comprovada, ( a morte com volta é a morte?), mas pelo menos a ato de passagem da fronteira desta vida para um outro espaço-tempo, o espaço-tempo do tudo ou do nada, ou do tudo-e-nada. Os nossos conceitos são curtos e toscos para lidar com a eventualidade desta realidade, as palavras burdas, inadequadas, imprecisas.

A velhice aproxima inelutavelmente da morte e se não fosse mais que por esse motivo, é um caminho de desconforto. Desconforto do corpo emperrando, desconforto da proximidade inevitável da grande questão filosófica essencial, a do grande fim ou do imenso princípio. Olhos nos olhos: definitivamente abertos ou inapelavelmente cerrados.

Para quem acredita na vida eterna - bem-aventurados! -, ainda assim as religiões ocidentais não foram generosas nos seus rituais e cultos de passagem.

Um amigo meu, que não acredita em nada, não por convições profundas mas apenas por ser muito jovem para ter dúvidas, tem uma observação que me cala funda:

- Por que os cemitérios são tão tristes, tão apavorantes, tão inquietantes? Não deviam ser aprazíveis terrenos verdes, lugar de encontro entre vivos terrenos e queridos vivos eternos?

Isso acontece, se não invento, em cultos não ocidentais.

E se assim não for, esse é um dos lados bons de já muito viveu: o de misturar o real e o imaginário, em tornar o imaginário tão real como a realidade da memória, a memória tão viva como os sonhos sonhados ou a sonhar.

Nem só de mazelas é feita a velhice.