Toda a arte é uma busca, e nesse sentido, uma força transformadora. Todo o poder, qualquer que seja sua ideologia, busca a autopreservação e é, sob esse ângulo, conservador. Por isso, as relações entre o poder estabelecido e a arte são, inevitavelmente, num fio de navalha.
A arte, independentemente do valor lúdico fundamental, questiona o homem, a sociedade, seus valores e, ainda que indiretamente, questiona o poder, que reage frequentemente com despropositada violência.
Acabamos de ter um recente exemplo disso em Cuba, semanas atrás, quando Fidel Castro, reconduzido para o mais alto cargo da nação por unanimidade absoluta, para um mandato de mais 5 anos, fez algumas considerações sobre a cultura.
Sou, e continuarei sendo, um defensor da revolução cubana, que resgatou não só para Cuba, mas para toda a América Latina e países do Terceiro Mundo, muito da dignidade usurpada durante a colonização e perpetuada pelos atuais mecanismos de dominação econômica e cultural. Mas constato, uma vez mais, a extrema dificuldade das frentes revolucionárias (quando representantes do poder estabelecido), em dialogar com os artistas, com suas contribuições críticas, ainda que com os mais insuspeitos e os mais visceralmente identificados com o projeto político.
Fidel Castro atacou severamente o cinema cubano atual e sua instituição, o "Instituto Cubano de Artes e Industria Cinematográficas", o ICAIC, citando nominalmente os filmes "Amor Vertical" e "Guantanamera": um como pornográfico, o outro como contra-revolucionário.
Não assisti "Amor Vertical", nem conheço seu realizador. Mas vi e aplaudi, como tantos brasileiros e outra gente mundo afora, o magnífico "Guantanamera", de Tomaz Gutierrez Aléa, o Titón, a quem dediquei meu primeiro livro das crônicas que, ao longo de quase 5 anos, venho alinhando aqui nesta coluna.
Titón, um dos fundadores do atual cinema cubano e um artista profundamente identificado com a Cuba revolucionária, nunca cegou o seu olhar às mazelas do processo de transformação da sociedade e do homem cubano, e nos deixa uma obra que nos permite consagra-Io como o maior cineasta cubano de todos os tempos. Não merecia, como homem e artista, ser citado como contra-revolucionário por quem lhe entregou pessoalmente uma comenda por serviços prestados quando da inauguração da "Escola de Cinema e Televisão de San Antonio de los Baños" e o homenageou no seu funeral com uma coroa de flores.
Parece que - numa reunião na União Nacional de Escritores e Artistas Cubanos, UNEAC - Fidel Castro reconheceu a possibilidade de ter errado em seu radical julgamento. Espero que assim seja.
Mas a frente de um poder revolucionário só atinge a grandeza de seus propósitos quando reconhece abertamente seus desacertos. Titón e o cinema cubano merecem um reconhecimento público por quem os esmagou com o peso de sua palavra, invalidando de uma só penada a contribuição que vêm dando ao longo de décadas para a consolidação e aprimoramento do processo revolucionário.
Espero que Fidel Castro compreenda a urgência e a importância política de afastar as sombras intimidantes do poder que lançou sobre o cinema e as artes cubanas.