Ruy Guerracronicas

Algumas palavras para alguém que anda por aí há já algum tempo
Ruy Guerra




... e eu andei de lá pra cá, de cá pra lá, pensei, hesitei, de novo de lá pra cá, parei onde tinha saído, me decidi.

Tudo bem, não queria , mas topo.

Difícil.

Vou escrever umas linhas sobre o cara, a amizade enxotada para longe, fingindo que eu sou outro, a cabeça desgarrada, o pensamento nos dedos. Eles que corram pelas teclas, ao deus-dará. Veremos o bicho que dá.

Certamente nada de novo na frente ocidental.

Quem me conhece de perto sabe que sou obcecado pelo tempo. Talvez seja um paradoxo mas desprezo a pretensão das datas fixas.

Cores não se discutem.

As cerimonias que acompanham esses dias marcados no calendário, um pé em falso e pronto: lá estamos nós no espelho, o rosto enraivecido ou lambuzado de pieguice. No entanto, não desdenho a importância dos rituais e gosto de sua arquitetura, desde que eu não esteja emocionalmente envolvido.

Meu lado voyeur, com uma possível dosagem de cinismo.

Agora, aqui, uma pedra no meu caminho: mais que uma pedra, um imenso pedregulho. Hoje – um hoje que vai acontecer daqui a alguns dias - erguem um monumento de 70 anos. Merecido, concordo.

Daí a minha confusão.

O cara a ser homenageado – li nas folhas - se mandou para Paris.

Nada de inabitual na sua vida, mas desta vez não me venham dizer que a coincidência foi um acaso. E a timidez não explica tudo. A data, redonda, implica em ele ser obrigado a olhar para trás, rever a vida, olhar o futuro que míngua a cada hora, olhar para si mesmo, num momento em que o que mais se quer é já estar no cotidiano do dia seguinte.

Não é tudo - mas tem disso.

Seja como for, entre silêncios, foguetes e fantasmas, é uma data que dói.

E vêm outros, de boa fé, o sorriso rasgando o rosto, gravar, eufóricos, prematuros epitáfios. Entre eles, eu, desequilibrado, a contrapé, com banalidades e despropositadas reflexões, desrespeitando o momento, grave.

Me perdoa, amigo.

Daí o meu incômodo.

Falar de admiração num momento de sua inevitável solidão. E não fujo da rima inoportuna, neste atabalhoado texto – eu, que a odeio na prosa - logo ao escrever sobre alguém que a usa com uma irritante precisão, que apelaria de cirúrgica, se essa não brotasse nas suas canções, incontornável, a ampliar o significado cru da palavra certa.

Palavras rascantes, por vezes fora de moda, de rimas esdrúxulas, as rugas apagadas; palavras dessuetas, de rimas inóspitas, a pretensão espanada; palavras do dia a dia de poetas dos becos, de rimas povão - e dá-lhe ão nisso) - sabor feijão com arroz. Todas, exatas, se divertindo ou gemendo, num cacarejo de aliterações e significados, trazendo suas alegrias e dores numa melodia, arranhada no violão, com o ferro inequívoco do seu criador.

E eis o menestrel, sem adjetivos.

Cara, admiro essa paixão pela palavra e a mão forjada para escrever esses garranchos e arrancar as notas limite de um pinho vagabundo - que se entrechocam, lúdicos, e que quando um se dá conta, a canção já te tomou pelo ventre, irremediável companheira para o resto da vida; cara, admiro essa mão, que na prosa silenciosa do romance ou na vibração texto falado, em retas sinuosidades encontra o sentido agudo da palavra. Saber de quem caminha por essas décadas, os olhos atentos, cravando os dentes longos em tudo o que pulsa.

Cara, e talvez mais que tudo: admiro esse destemor de Geraldo Sem-Pavor que tens da vida, desde jovem – e sei do que falo - depois homem feito, agora já não tão jovem para quem acredita em números, sempre inteiro no sempre do cotidiano, corpo e alma nessa coisa de ser brasileiro e não fugir de o ser. Mergulhando cada hora mais fundo nas tuas assumidas convicções, sem alarde e sem estandarte, sem dúvidas hamletianas, estorvos e leite derramado na jornada.

Admiro, admiro e admiro.

Só não me venham dizer que esse talento é inato, dádiva divina.

Assim também eu! - dirão alguns detratores. Mentem, com quantos dentes têm na boca.

É ignorar o trabalho constante, teimoso, de quem é e foi capaz de se construir dolorosamente no seu ofício e na dura tarefa de ser do seu tempo.

Deixem os cães latir ao passar da caravana.

Se Deus existisse - os crentes que me perdoem a eventual blasfêmia - não teria dado tanto talento, em olhos verdes, a um só Francisco.

No outro prato da balança - 0 santo é de barro - à guisa de consolação torço para que não faças, no Maracanã, o gol de teus sonhos.

Termino.

Se não acordares de humor afiado, quando leres esta colcha de retalhos, sei que estraguei o teu dia.

Pelo dia, por seres o ser que és, te deixo de presente na soleira da porta, o que de melhor te posso dar da minha eterna amizade: a minha inveja.