Ruy Guerracontos

Farol vermelho
Ruy Guerra




Chão empedrado, sombra, tristeza, desespero!

Arrancou da boca o cigarro meio consumido e esmagou-o sob o tacão do sapato raivosamente. Raios, tudo lhe sabia mal, tudo!..desde que andava por ali ao Deus dará, a procura de trabalho e nada, raios ele não cá fazia questão do que fosse, nem do ordenado, mas nem assim – Porca da vida, o pensamento...sacudiu a cabeça fúria, não! Isso nunca, rompejou, como podia ter lembrado de tal coisa? As unhas compridas enterraram-se nas palmas das mãos, as mãos nos bolsos. Retomou a marcha interrompida, as passadas arrastavam-se mais de fastio no chão empedrado, sombra, tristeza. De quando em quando um vulto apressado logo engolido por uma casa escura, não os via. Devagar, muito devagar, continuava em frente. Para onde? Sabia lá para onde? Não tentara tudo? Que mais podia fazer? Por todo lado sempre a mesma coisa de porta em porta, de rua em rua; a principio o pouco dinheiro que tinha, ainda lhe dera esperança, mas depois que o gastara, depois que o comera em vão,fungou um riso amargo. Fora há dois dias, apenas dois dias, quanto tempo parecia ter passado, dois dias, andava por ali aos baldões, implorando um pouco que comer, fome, dois dias de fome, as forças a fugirem, cairia para ali, para qualquer lado, não mais se levantaria, porque se caísse não sabia se poderia levantar. Por isso andava, arrastava, chão empedrado, sombra, tristeza. O mesmo pensamento, sempre vinha, nunca, um vulto passou, ergueu a cabeça, os braços penderam ao longo corpo, dinheiro, comida, não, não. Olhar torpo, febril, tremor convulsivo, não fome, comida, dinheiro, fome, os dentes rilhados, abateu sobre a vitima, raro, rápido, sedento, fome, fera, a mão fechou-se no pescoço, as unhas cravaram-se a punho fechado, erguido abateu-se, fome, uma pancada, fome duas, fome tres, o corpo enrolou-se lhe aos pés, molemente, sem consistência, sentiu um baque, as pulsações se aceleraram, não era para aquela vida, ele não, fome, vasculhou avidamente as algibeiras, meia dúzia de moedas, dinheiro, comida, fugiu tresloucado, só parou longe, comeu, comeu, voltou à viela, sem fome, sem fome...com remorso, chão pesado, sombra, tristeza, ninguém, tudo escuro, tudo negro, apenas os clarões dos lampiões mortiços, desespero, na mão as moedas que restavam, escaldavam, dinheiro roubado, remorso, sentiu tentações de as atirar fora, desviou a vista, ladrão, ele ladrão, remorso seria a ultima vez, a ultima, as moedas riram-se, fitou-as alucinado, teve então a certeza, a cruel certeza, já tinha roubado, não voltaria a ser o mesmo, ergueu a cabeça, tombou, a rua escura, casas sombrias, o chão empedrado, sombra, tristeza, remorsos, candeeiros, luz viva intensa, gargalhadas, troça, serrou os olhos, meio cego, o clamor aumentou, a luz continuava a ofuscá-lo, remorso, quis fugir, correu, caiu, tornou a correr, tornou a cair, claridade, gargalhadas, ladrão, ladrão, uma súbita calma, que deveres tinha para com os homens.