Ruy Guerracronicas

M. Vincent (São Vicente de Paula)
Ruy Guerra




Desde o primeiro momento nota-se em M. Vincent a preocupação constante de retratar com o máximo de realismo possível a vida das classes pobres da França, na época da crise do século XVIII e a ação de um padre, Vicente de Paula.

Definida essa orientação restavam ao argumentista dois modos de encarar o personagem principal da obra, o Santo e o Homem.

Jean Annouilh optou pelo ultimo, deixando a cada um a liberdade de ver ou não o santo, o ser humano que nos apresenta, tanto assim, é que o próprio titulo original M. Vincent, cuja tradução, tanto em Lourenço Marques como na Metróple não foi respeitada é apenas o tratamento a que o cargo religioso que ocupava lhe dava direito.

Uma vez decidida a diretriz a seguir é justo destacar a maneira equilibrada como argumentista que ele pretendia apresentar; é de fato um Homem com seus ideais com, seus erros e fraquezas o que nos vemos na tela; tem um fim a atingir, a ajudar os pobres, mas para isso não sabe como se conduzir, apóia-se nos ricos, usa das honrarias e riquezas que lhe concedem, mas a tudo vem a renunciar, porque finalmente achara a solução, seriam os próprios sem-pão que se ajudariam uns aos outros e quando ele tivessem morto a fome, aquecido o corpo, cumprido o seu dever de ser humano, faria sua missão de sacerdote, falaria então da alma, antes não.

Foi assim lutando contra os conceitos rígidos da época, contra a interpretação parcial da doutrina de Cristo contra a falsa bondade das senhoras da sociedade que em reuniões de beneficência que discutiam e aprovavam o uniforme para fazer bem “ou rejeitavam” auxilio apreciável pela simples razão de que “ haviam sido elas que tinham tido a idéia” que Vicente de Paula foi erguendo a sua obra.

Foi uma luta toda a sua longa vida. Uma luta que não o levou de vencida porque tinha fé no homem

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M. Vincent é uma critica social intensa, por vez mordaz. É tanto mais dura e difícil de ouvir quando temos que reconhecer que se alguns dos problemas debatidos no filme se encontram em parte solucionados ou se permanecem de pé. Maurice de Cloche na sua obra foca a França de 1600 e tal, mas os assuntos que lá se discutem pertencem a todos os paises, todas as épocas, é justamente por isso, por se tratar de problemas atuais, que M. Vincent se reveste de interesse especial.

A Jean Annouilh, argumentista e célebre escritor teatral, se deve parte do triunfo do filme, pela forma como soube dar universalidade a sua critica.gora vem uma citação. Numa obra cinematográfica, como em qualquer outra obra de arte, temos dois aspectos de real valor e complementos um do outro, o conteúdo humano e a maneira como essa mensagem nos é dada. Desprezar qualquer delas, querendo viver uma só, pode apenas valer pela intenção, mas é pouco e quando chega, e tal só pode acontecer pelo sentido de humanidade que nos transmite e nunca unicamente pela perfeição formal, não satisfaz completamente.

Felizmente M. Vincent não é nenhum desses casos, o esplendido argumento de Jean Annouilh teve um digno continuador, chamemos assim, o realizador Maurice de Cloche, usando de uma fotografia bastante razoável, e secundado por um esplendido sonoro, o filme tem cenas de uma beleza técnica indiscutível. Maurice de Cloche soube usar com sensatez e discrição os movimentos da câmera, sem ângulos vanguardistas, mas belos. Do uso de planos longos e panorâmicas lentes, resultou cenas interessantíssimas, como as da igreja abandonada onde apenas se ouve no silencio o som vagaroso e ecoado das passadas. Outra magnífica tomada de vista é a da seqüência inicial em que câmera, habilmente movimentada deslizando pelas paredes desertas das casas, da a sensação de solidão que se pretendia,; como na anterior; é também o som dos passos na calçada a única evocação sonora. Aliás, em todo o filme os efeitos da musica foram afastados e quando se usa deve ter sido escolhidos com grande poder de adaptação, pois nem sequer notamos a sua existência.

A cena do primeiro close merece especial destaque, desde o convite que se lê no sorriso amargo da rapariga, às confidencias do miserável (estas ficando um pouco pelo artificialismo literário, mas indiscutivelmente de grande pode emotivo) Maurice de Cloche consegue nos fazer do tuberculoso a personificação da miséria; é também a miséria que fala pela boca do outro pedinte, um aleijado que o vão do escuro de uma igreja não deixa ver, mas neste a cena resulta um tanto frouxa, pela fraca realização e fotografia demasiado escura, mas em ambas estas seqüências houve um fator importante que o realizador francês não esqueceu, é que sendo cenas profundamente auditivas, de maneira alguma a imagem é relegada para o segundo plano.

É assim M. Vincent: um filme de que retrata a miséria e onde se agita toda uma multidão. Como não podia deixar de acontecer, algumas dessas figuras perderam parte do contorno para ganhar em simbolismo.

No recorte das personagens principais, contudo tal não acontece, como vemos pelo drama da alta sociedade de bom fundo, que apesar de toda a sua compaixão (sim, porque os ricos podem ter compaixão), vem amarra-la uma educação, preconceitos e uma situação social diferente.

E para fechar estas considerações: achamos absolutamente merecidos os prêmios atribuídos, tanto a Pierre Fresnay, Vicente de Paulo, como ao filme. Não falamos em defeitos, o que não quer dizer que não os haja, mas seria absolutamente inútil apontá-los, visto eles não se refletirem no equilíbrio geral.

M. Vincent: um bom filme que satisfaz as intenções sociais de que se reveste, mais um triunfo do cinema francês.