Ruy Guerracronicas

A Ricardo o que é de Ricardo
Ruy Guerra




Um prazer inesperado me esperava em Havana: o reencontro com meu velho amigo Ricardo Aronovich.

Aronovich, hoje reconhecidamente um dos expoentes da fotografia mundial, vivendo na França para onde o arrastei em 1969 para trabalhar em "Sweet Hunters", depois de o ter trazido para o Brasil em 1963, estava aqui para dar uma oficina de fotografia na "Escuela de Cine y Television de San Antonio de los Baños."

Mantemos ao largo dos anos um contato irregular, mais por minha culpa, que sou um tanto avesso a cartas. Fazia tempo que não nos víamos, e quando conseguimos vencer os compromissos de cada um e a barreira dos recados esquecidos nas portarias de hotel, era véspera de seu regresso a Paris.

Fomos jantar num "Paladar", nome genérico dado aos restaurantes instalados em casas particulares, assim batizados devido ao sucesso da telenovela "Vale Tudo", e que pululam em Havana.

Nos surpreendemos. Nenhum de nós sabia da existência do livro do outro; menos ainda que nos citávamos mutuamente, com a generosidade de amigos de longa data, ainda que de minha parte com uma pequena dosagem de maldade uma vez que a minha crônica abordava a argentinidade e seus estigmas.

Falar de Ricardo Aronovich poderia ser longo, e as confissões de admiração são um pouco como as histórias de amor felizes: têm pouco o que contar. Resumo toda a ternura que nos une com a palavra "irmão", que faz parte da dedicatória de" Exponer Ia historia", obra que pensávamos escrever juntos, e agora editada pela Gedisa, Barcelona.

Ricardo é um "técnico, dentro da técnica" (Estou citando Fernando Pessoa). Diria mesmo um técnico obsessivo, sempre atento a todos os avanços e experimentos na área da fotografia. Mas fora da técnica, "um louco, com todo o direito de se-Io" ( E fecho a citação). Seu livro começa com a técnica e os últimos capítulos tratam do exercício da loucura, no sentido lato da criação. Ainda assim é um raciocínio disciplinado, didático, extremamente econômico de palavras, que não reduz as idéias, antes pelo contrário instiga a uma reflexão, apontando caminhos.

Uma obra importante, como importante foi a participação de Aronovich no Cinema Novo.

Foi um desses acasos - que alguém mais ligado ao sobrenatural do que eu não deixaria de sublinhar como a participação do destino ou outra entidade difusa ., que me fez encontrar Ricardo. Eu estava procurando um diretor de fotografia quando fui a

uma sessão de curtas argentinos, no "Museu de Arte Moderna". "Los Anônimos", pelo tratamento da imagem, me chamou particularmente a atenção, a ponto de reter o nome do fotógrafo. Mas certamente a história terminaria aí, se não tivesse recebido o telefonema de um conhecido que perguntava se não gostaria de conhecer um diretor de fotografia argentino, de passagem no Rio. O nome do fotógrafo era o do curta que tanto me impressionara, dois dias antes.

Nos encontramos no próprio MAM e foi amor à primeira vista: na técnica e na loucura. Os conceitos de Ricardo batiam com o que eu pensava então sobre o tipo de luz que devia ter o filme que seria "Os Fuzis". Foi uma longuíssima conversa, que terminou ao entardecer com a participação do produtor Jarbas Barbosa, com a ingrata missão (de que ele não se esquece até hoje!) de importar negativo "Dupont", para realizar o que pretendíamos: uma crua luz nordestina, de exteriores "queimados" e sombras densas. Esse conceito de luz - tema de longas conversas do pessoal de cinema no botequim da Líder, a que não estava alheio Luis Carlos Barreto ., afinava com a sensibilidade de Ricardo, que o elaborou tecnicamente e executou com maestria.

Sempre que ouço, ou leio, que a luz do Cinema Novo foi criada por Luis Caros Barreto em "Vidas Secas", tenho o sentimento de que uma grande injustiça está sendo feita em relação aos "Fuzis" e a Ricardo Aronovich. Uma injustiça que me

parece tempo de corrigir para a história do nosso cinema, e que estou certo o próprio Luis Carlos (que deve recordar as longas e entusiásticas conversas que tínhamos os dois sobre o assunto), será o primeiro a querer reparar.

As idéias criativas do Cinema Novo circulavam livremente entre seus participantes e foi isso que fez dele um movimento importante. Ricardo Aronovich teve nele uma presença definitiva, não só na sua luz, mas na formação de alguns dos nossos atuais grandes diretores de fotografia.

Uma presença, que espero, não tenha terminado.