Ruy Guerra é uma cineasta da palavra mas acima de tudo é um realizador de múltiplas capacidades criativas, artista multifacetado que dispõe o seu olhar crítico e pensamento por variadas artes. Fica-nos na memória um realizador incansável que olha para o futuro como se ainda tivesse 30 anos de idade. A entrevista foi feita em Lisboa, na Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologia, no dia 23 de maio de 2011, para o mestrado em Estudos Cinematográficos.
Rafael Antunes; António Costa - O Ruy Guerra é um artista multifacetado, é realizador de cinema, ator, diretor de fotografia, escreve para cinema, para teatro, fez letras para música. Dentro de tantas atividades, como se define?
Ruy Guerra - Bom, isso é resultado do subdesenvolvimento. Porque se eu fosse de um país riquíssimo, possivelmente seria só realizador de cinema. Como é difícil viver só de uma atividade como a de realização, neste caso, no Brasil, em vez de ir para o desemprego, fui fazendo outras atividades. Isso obrigou-me a caminhar para outras áreas relacionadas onde me sentisse capaz. Também foi resultado de certas atitudes políticas porque, por causa da censura, eu estava proibido de trabalhar no Brasil. Nessa altura, fui para o campo da música, escrever letras de canções... Na época, proibiam-me as canções, fui escrever como cronista para jornais, proibiam-me como cronista e voltava para editar ou montar filmes e, se não funcionava, tentava o teatro e, quando o teatro não dava, eu ia para os espetáculos musicais. Enfim, fui saltando em todos os galhos por uma questão de sobrevivência. Mas isso, para mim, acabou por ser muito gratificante, porque do ponto de vista do desenvolvimento se não fosse isso eu possivelmente nunca teria abordado essas áreas.
RA; AC – Com 17 anos fez um filme, com uma câmara de 8 mm emprestada, sobre os trabalhadores portuários negros em Moçambique o que lhe trouxe problemas com a polícia política. Já tinha consciência do poder que o cinema podia ter?
RG - Eu não sei se tinha consciência. Eu sabia, inclusivamente, que tinha de revelar uma parte dum filme em Moçambique e tive de improvisar uma revelação com a ANC, na África do Sul, porque os filmes em que eu estava trabalhando e fazendo eram filmes clandestinos para a intervenção política estavam sendo censurados nos laboratórios. Então, mesmo se eu não tivesse consciência, por outro lado, já sabia que, de qualquer maneira, os filmes que foram filmados na própria África do Sul eram censurados. E então, eu tinha obrigação de ter consciência disso, não é? E como mandei alguns filmes para lá que não voltaram, que foram censurados, eu, obrigatoriamente, admiti que, se os órgãos de poder estavam tão atentos ao que se estava fazendo, o cinema tinha algum perigo.
RA; AC - Foi perseguido pela polícia política por causa do filme. Contenos esse episódio com a PIDE.
RG - Isso foi por assinar manifestos de movimentos de unidade democrática, que se manifestavam na época das eleições, para a presidência e outras atitudes. E por escrever em jornais com um nome com o qual não podia escrever, artigos, etc. Não foi propriamente ou diretamente por causa do filme.
A prisão foi que havia um lado… Moçambique era um meio muito pequeno, daquela burguesia local branca. Não nos esqueçamos que estávamos numa colónia em que nós, filhos de colonos portugueses, éramos portugueses de segunda classe. Oficialmente, de segunda classe. Os colonos portugueses, no caso dos meus pais, eram lisboetas e tal, brancos, com uma certa nobreza por ser de Lisboa. Era um meio muito pequeno que afetava todos. O caso de um garoto como eu, com 16, 17 anos, ser preso... isso mexia muito com a estabilidade local. Às vezes, era preso porque escrevia em jornais que não eram considerados gratos, como o jornal Itinerário, por exemplo, que só tinha uns certos períodos de liberdade controlada, vigiada, em momentos pré-eleitorais que se dava uma pseudo liberdade de imprensa.
E eu, nesses momentos, escrevia vários artigos que assinava com o meu nome e isso não era aceite. Podia assinar com pseudónimo e recuseime a assinar com pseudónimo. Lembro-me que a polícia prendeu-me uma vez e disse “Por que é que você não escreve com o seu pseudónimo?” E eu disse: -“Mas porquê?” – “Porque todos os seus amigos que assinam com pseudónimos não têm problemas. E eu disse: “Quais amigos?” “Fulano tal e fulano tal.” E eu disse “Mas se vocês sabem, porquê eu escrevo com pseudónimo? Não vejo razão para isso”. E então prenderam-me. Quando vim para Portugal com o meu pai, para fazer a última cadeira que me faltava, a PIDE foi avisada e eu fui preso. Ainda o barco estava ao largo e a PIDE foi-me buscar por ser uma persona non grata. Passei uma noite lá preso, depois soltaram-me e fiquei vigiado. Uma vez, nas terças-feiras clássicas que, na época, existiam no Tivoli, eu estava no segundo balcão, que era para onde iam os estudantes, porque era mais barato. Havia sempre uma apresentação e, nesse caso, acho que o filme era Milagre em Milão e um padre que lá estava interrompeu o filme a meio e o pessoal pateou, assobiou, protestou, mas não era por ser padre, o que seria grave naquela época, porque havia o Cardeal Cerejeira e aquela ligação do Estado com a Igreja, mas porque foi no meio do filme e não era uma coisa para ser feita, segundo os nossos critérios. E quando saímos, vários fomos presos. Havia só esse tipo de questão mas, finalmente, a minha família conseguiu manejar e deixaram-me ir para França e só voltei depois do 25 de Abril. Tive um processo político mas acabou por não acontecer mais nada porque não voltei.
RA; AC - Em 1952, vai para Paris estudar para o IDHEC (Institut des Hautes Études Cinématographiques), onde havia uma intensa efervescência na discussão sobre a política de autor, com Truffaut, Godard, Rohmer e Chabrol. Como foram esses anos?
RG - Foram extremamente ricos. Primeiro, porque eu não conhecia o cinema Europeu, pois em Moçambique não passavam filmes europeus. Quando estive aqui em Portugal, durante esses 6 meses em que completei o Liceu, via alguma coisa mas não tinha tanta escolha como tinha em Paris, uma cidade que, até hoje, é uma cidade ideal para se ver filmes. E naquela época, pululavam os cineclubes, havia a cinemateca e eu tinha um atraso histórico. Naquela época, eu só tinha visto um ou dois ou cinco filmes europeus. Ao mesmo tempo, também pelo facto de estar em contacto com jovens. Na minha casa, éramos uns 40, dos quais tínhamos uns 10 ou 12 franceses e o resto eram jovens de todas as nacionalidades: gregos, turcos, egípcios, vietnamitas, canadianos, mexicanos, brasileiros, todo o mundo trocando impressões e discutindo cinema, vendo cinema todo o dia, escrevendo sobre cinema, lendo sobre cinema, vomitando cinema. Foram anos extremamente ricos. E com o facto acrescido de estar com 22, 23 anos, que é um momento em que se está aberto para tudo e se tem energia para estar aberto para tudo. Foram anos que guardo com muito carinho, extremamente ricos para o processo pessoal. E, ao mesmo tempo, também tinha um choque de cultura. Havia o facto de estar a falar um idioma estrangeiro, que eu falava pouco e mal. A pouco a pouco, fui aprimorando até chegar a um nível razoável de entendimento e acabei por ficar lá por vários anos. Mas tinha aquela questão de me faltar o português. Eu nunca quis ficar em França, propuseram-me lá ficar mas eu nunca quis, porque a palavra, para mim, é muito importante e eu nunca concebi viver num país que não falasse o português. Então, tinha esse conflito cultural, que era acrescido por aquele cartesianismo francês, que sempre teve a capacidade de me irritar muito, já desde garoto, que é a ideia que tudo se resolve pela razão e que é tudo esquemático e há relações causa-efeito muito bem marcadas e as conclusões são óbvias e evidentes e matemáticas... E eu nunca acreditei que a vida fosse assim. Tive esse percalço no andamento da minha vida mas, de maneira nenhuma, tirava o prazer desses anos que guardo com muita, não diria saudade, mas com muito afeto.
RA; AC - Queria ser escritor, adaptou para o cinema obras de Gabriel Garcia Marquez e Chico Buarque, entre outros, e chamam-lhe o cineasta da palavra. Como é que a literatura influencia o seu trabalho?
RG - Queria e quero ainda ser escritor. Esses sonhos da juventude, geralmente, não se destroem com facilidade. Podem não se realizar mas não se destroem, e ainda quero ser escritor. Espero escrever mais porque o que acabei escrevendo foram crónicas, poesia e, claro, muitos guiões. Mas como uma coisa, simplesmente, de transição e não considero que isso fosse a escrita a que me estava propondo fazer quando era jovem. Mas não foi isso que me levou a escolher romances para fazer filmes. Curiosamente, sempre tive muitos amigos romancistas e não acho que tenha sido uma escolha deliberada mas os que me eram mais próximos, são da música e da literatura. Tenho bons amigos de longos anos cineastas mas, no meu trato quotidiano, sempre foram mais os músicos e os escritores. Com os escritores, obsessivamente, eu informava-me sobre o método de trabalho, perguntava-lhes quanto tempo para isto, como é que era… Bem, estou muito bem informado em como se escrevem romances, só falta escrever. Estou a meio de um.
Sempre senti uma paixão pela palavra, pela literatura e pela poesia, evidentemente, mas escolhia os filmes porque houve uma altura, uma década em que filmei mais romances porque não tinha tempo para elaborar os meus próprios guiões. Agora estou filmando menos, tenho esse lado negativo mas, por outro lado, positivo. Tive a oportunidade de escrever três guiões meus, que espero que se façam e que são três histórias originais. Não tenho nada contra escrever a partir de romances mas gosto de escrever as minhas próprias histórias.
RA; AC - Está ligado ao surgimento do cinema novo Brasileiro e o filme Os Cafajestes, de 1962, foi um enorme êxito de bilheteira. Era um cinema que contrariava a produção que, até então, se fazia no Brasil. Como define esse período?
RG – Esse foi um período extremamente rico porque o próprio Brasil estava num momento de uma espécie de euforia, de um orgulho de ser brasileiro, trazido pelo Juscelino Kubitschek, que teve a capacidade de dar ao país uma onda de esperança e um orgulho de ser brasileiro, que era uma coisa muito contestada frequentemente. O país estava caminhando. Isto era quando o Juscelino queria fazer “cinquenta anos em cinco”, uma série de utopias, criando a cidade de Brasília, enfim... Havia uma liberdade muito grande de expressão. O Juscelino, com muitos defeitos que teve, inclusivamente, quando a inflação chegou a quarenta por cento por mês, num determinado momento, ou construindo Brasília, que também serviu como lugar de muita corrupção e muitas fortunas ilícitas dentro desses projetos megalómanos, como era o de construir uma cidade no meio de um descampado, mas ao mesmo tempo, era uma pessoa que nem os movimentos contrários, revolucionários e tal (..), ele amnistiavaos, com uma grande generosidade e sabedoria política, e o país teve muita vibração mas dentro duma certa tranquilidade. E foi nesse contexto que as águas foram propícias para o surgimento do chamado Cinema Novo. Não é que houvesse grandes ajudas estatais, não houve um olhar político para o cinema mas, de alguma forma, apareceu uma forma de cinema muito artesanal. Por exemplo, no caso d’Os Cafajestes, é uma cooperativa formada por todos nós, que ninguém tinha salário e todos teriam uma percentagem sobre um eventual lucro do filme, um entrava com a câmara, um pequeno grupo de empresários entrou com o dinheiro mínimo para poder comprar o negativo e fazer o filme... Esse cinema artesanal foi muito bem estruturado, no caso d’Os Cafajestes. Nós tínhamos uma visão muito clara do que devia ser o filme. Nós queríamos um filme contra a indústria “tradicional”, que tinha sido o fracasso da (Companhia Cinematográfica) Vera Cruz, em São Paulo, da grande indústria, que era um cinema académico, um cinema da burguesia mas voltado para a História do Brasil. Mas uma História dos senhores de escravos, dos grandes plantadores de café, uma História muito elitista, de boas intenções mas uma História muito acomodada sem nenhuma proposta de linguagem nem de coisa nenhuma e nós fizemos um filme que não era bem contra esse cinema, porque esse cinema já tinha morrido de si próprio. O que havia, ainda, no Rio de Janeiro, era a chanchada, que eram comédias populares de grande êxito e que, na verdade, eram extremamente simples, de grande apelo popular. Mas era sempre a mesma história de dois camaradas, uma historiazinha de amor, uma música de carnaval, uma cena em bôite, uma aventura engraçada e isso tinha um grande sucesso e não havia espaço para mais nada. Então, nós propusemo-nos fazer um filme que já tivesse características que pudessem ser consideradas “artísticas”, entre aspas mesmo, e que se impusesse por uma certa qualidade cinematográfica, e ao mesmo tempo que tivesse uma capacidade de chamar a atenção sobre si, pela sua temática e pela sua linguagem. E nada melhor que criar um escândalo, que foi o caso do nu frontal da Norma Bengell, que foi feito de uma maneira que a censura não a pudesse cortar. É uma cena que virou antológica, porque são três minutos, é um chassis inteiro em volta de um carro filmando a Norma Bengell, que era uma mulher lindíssima, escultural, (estou agora a organizar uma homenagem para ela na Academia de Cinema do Rio de Janeiro) e a censura ou tirava o plano inteiro ou não podiam tirar nada. Cortassem o que cortassem, ela apareceria sempre nua, e não contava que os censores fossem capazes de entrar numa cena e cortar. Passou a censura e o filme foi um êxito de bilheteira enorme, o filme pagou-se em quatro dias de exibição só no Rio de Janeiro.
RA; AC - Disse numa entrevista que o cinema novo era feito com muito poucos recursos, que o importante era filmar. Hoje, os jovens têm acesso a meios técnicos muito mais barato e acessíveis. O que os impede de conseguirem um movimento tão importante como o Cinema Novo?
RG - A Obsessão pela técnica. O produto bem acabado no aspeto técnico. A busca de uma fotografia dentro de certos padrões consideradas perfeitas. O desejo de um produto acabado sobre o ponto de vista profissional com níveis de extremos de perfeição. O que nós tínhamos muito claro, é que nós fazíamos o cinema do possível, o que era possível fazer, não nos interessava o conceito de perfeição ou de imperfeição. Fazíamos o cinema que é possível fazer nas condições que dispúnhamos. A qualidade do filme era uma coisa secundária. O que interessava era dizer coisas, abordar temáticas. Se a fotografia fosse boa, ótimo. Não se procurava a perfeição, se a fotografia fosse desfocada, ótimo. Inclusivamente, em Os Cafajestes, começo o filme com cenas desfocadas intencionalmente, o que, de uma certa forma, é já uma proposta para que o espetador não procure ver tudo dentro de parâmetros de rigor estético. Tanto que, a primeira cena que filmei, recebi um telefonema do laboratório: “Ruy, você desfocou tudo, não presta para nada.” e eu respondi que era assim mesmo! E do laboratório disseram: “Ah, é assim mesmo? Estão todos loucos”.
Acho que é uma atitude extremamente perigosa e que já foi contestada por um realizador cubano, que agora não me lembro do nome, que escreve um texto muito bonito em que defende o cinema imperfeito, em que ele não advoga a imperfeição mas que o cinema imperfeito é tão válido como o perfeito. Quer dizer, não ficar amarrado pela necessidade de fazer só coisas perfeitas e ao “só se puder fazer coisas perfeitas é que se fazem”. A perfeição surge de outros valores dentro da linguagem. Hoje em dia, e já na história do cinema, uma quantidade de filmes que estão dentro dos padrões estéticos vigentes, também estão completamente fora deles, são filmes que têm coisas desfocadas, que têm imagem suja, raiada, têm o que quiser mas que têm algo a dizer. Eu sempre disse que faço qualquer filme com qualquer material, se me derem uma câmara com uma lente só, eu filmo com uma lente só, se me derem uma câmara sem grua, eu filmo sem grua. Já tive até filmes que me deram grua e eu disse que não precisava de grua, e se tiver uma câmara sem tripé, mas se tiver um operador de câmara que segure bem a câmara, eu faço. Os jovens precisam de se convencer hoje, que a estética não é uma coisa absoluta, não há um modelo, a estética cria-se a partir de umas propostas de linguagem mais amplas do que, simplesmente, a pureza da imagem, ou a pureza da montagem, ou a qualidade do som. O nosso som era um som péssimo, na época do Cinema Novo, porque não tínhamos som, era feito quase no limite da audibilidade. Os Fuzis foi inteiramente “dobrado” e não tínhamos sequer som guia para saber o que tinha sido dito. Eu acho que, quando se tem vontade de fazer um filme e se encontra uma equipa capaz de arriscar dentro desses parâmetros, vocês podem fazer os filmes que quiserem. E dizem-me: “Ah, mas depois não se consegue exibi-los.” Os outros filmes também não se conseguem exibir, os filmes que estão, aparentemente, dentro dos parâmetros técnicos e artísticos que são exigidos a priori, porque o crivo da exibição e da distribuição não está unicamente vinculado a esse tipo de filmes. Pelo contrário, até acho que hoje é mais fácil fazer com que um filme aparentemente sujo e consiga furar o crivo da distribuição do que um filme mais ou menos bem acabado. Não estou aqui a defender um cinema miserabilista ou um cinema, obrigatoriamente, de poucos recursos mas o que eu defendo é que não se deve parar de filmar porque não se têm as condições ideais. Porque as condições ideias em cinema não existem, nem para os filmes de cem milhões, nunca há condição ideal para fazer um filme. Há condições melhores, piores e outras quase impossíveis. Nós devemos pensar o cinema de uma forma que, se é possível fazer, faça com o que puder fazer. Também a favor dessa vontade e dessa estética que surge dessas condições, é que surgem respostas novas para suprir, justamente, as deficiências daquilo que não se tem. Acho que o que faz falta hoje à juventude é essa facilidade. A juventude sempre precisou de desafios e não se está a sentir suficientemente desafiada, seja pelo status quo do país ou por não ter sido desafiada pelas dificuldades inerentes ao processo de filmagem. Está procurando simplesmente conquistar essas condições ideais para fazer um filme quando devia lutar por aquilo que tem a dizer, independentemente de ter as condições que tiver. Se tem alguma coisa para dizer, deve fazê-lo, não importam as condições que tiver.
RA; AC - Voltou a Moçambique depois da independência para ajudar a fundar o INC - Instituto Nacional de Cinema. O que pretendia com essa experiência?
RG - Eram precisos quadros técnicos capazes de formar quadros moçambicanos, de gente que morasse lá. Eu fui e não sei se tinha a utopia de ficar lá ou não. Não sabia dizer, mas descobri rapidamente que não podia readaptar-me ao país de forma definitiva. Estava ali numa missão de resposta à minha juventude, uma resposta aos desejos de quando era jovem, para a independência de Moçambique, enfim, sentia-me obrigado a estar lá naquele momento mas uma obrigação profundamente agradável. Redimi-me um pouco de ter estado ausente das lutas de independência, não porque tivesse fugido dela mas porque tinha saído antes e já tinha começado a vida noutro caminho. E também, muito feliz por ter sido requisitado pela FRELIMO para isso e que me deu um campo amplo para poder trabalhar. A minha função foi, basicamente, formar quadros. Levar gente capacitada para lá e formar jovens moçambicanos para serem diretores de fotografia, realizadores, documentaristas, enfim, a trabalharem nas diferentes áreas do cinema. Isso foi muito gratificante porque, hoje, muitos deles são bons técnicos e, de alguma forma, sinto que respondi um pouco a questões da minha própria juventude.
RA; AC - Filmou em Moçambique Mueda, Memória, Massacre em 1979/80 e, em Portugal, Monsanto, em 1999/2000. Como foi a abordagem às vítimas dos dois lados do mesmo conflito?
RG - São duas temáticas que, de certa forma, se tocam mas que responderam a momentos diferentes do meu processo pessoal. Na época das aldeias comunais, eu propus um trabalho e trabalhei vários meses nisso. Era um sistema de exibição nas aldeias comunais, com filmes que corressem de aldeia em aldeia, para a formação de um público cinematográfico moçambicano nas diferentes aldeias por todo o país. Cheguei a ter arquiteto para fazer um estúdio de pontos de exibição, um trabalho longo mas que foi mal interpretado e que foi cortado pela raiz. Como senti que não tinha mais nada que fazer em Moçambique, disse que queria eu fazer um filme sobre Mueda. Foi filmado no Norte de Moçambique em condições extremamente precárias, numa região que nem sequer tinha comida nem nós quase tínhamos para comer. Eu quis que o filme fosse inteiramente rodado em Moçambique, revelado em Moçambique, podia ter sido feito a cores mas queria que fosse uma longa metragem feita inteiramente em Moçambique. É um filme que representa o primeiro momento da luta armada, quando se desencadeou a união da FRELIMO com os outros movimentos, e que é um momento histórico importante, que fiz com depoimentos de gente e com os próprios sobreviventes do massacre, que contam essa história numa tradição oral. Todos os anos, nesse dia, fazem essa representação teatral. Para mim, era extremamente surpreendente porque, em vez de ser um massacre onde morreu muita gente das famílias dos presentes, é um ato lúdico de prazer que eles fazem, nessa comemoração que contrasta com a nossa visão que tinha que ser uma coisa solene, uma coisa triste. Mas não, é um momento extremamente alegre e festivo. Já Monsanto, que me foi proposta aqui pelo Cunha Telles, quando estive de passagem e que me interessou pela temática. Além de ter vontade de filmar em Portugal, porque já tinha filmado em vários países, Cuba, Moçambique, França, México e nunca tinha conseguido filmar um filme em Portugal. E mesmo sendo um exportuguês de segunda classe, eu sentia-me já português de primeira classe e sentia que um dia teria que fazer um filme em Portugal também. Sinto necessidade de registar a minha presença. Embora fique meio triste porque ontem, na livraria, peguei uma antologia do cinema português e eu não consto lá. E depois fizeram uma pequenininha com 30 páginas de “portugueses em Moçambique”, “portugueses no Brasil”. Venho lá, pelo menos, nessa estou, só como editor, e eu digo: “Oh… sabem muito sobre mim mas enfim...” Voltando ao filme Monsanto, era uma temática que me era próxima, as guerras coloniais, e achei a história bonita, no sentido de estar bem escrita embora fosse cruel e pareceu-me interessante. E fiquei muito feliz por tê-lo feito.
RA; AC - O mundo lusófono é avaliado hoje entre 190 e 230 milhões de pessoas. O português é a oitava língua mais falada do planeta, a Literatura e a Música conseguiram vencer barreiras. Hoje, no mundo lusófono, todos conhecem Jorge Amado, Mia Couto, José Saramago, Caetano Veloso, Chico Buarque, entre outros. Na televisão, as novelas da Globo foram um caso de sucesso no mundo. O que faz com que o cinema feito nos diversos países Lusófonos não consiga vencer estas barreiras?
RG - Vontade política. A noção de importância dessas relações. Não compreenderem que todos os grandes caminhos económicos passam pelos entendimentos culturais. Não compreenderem o sentido do que era o mercado de antigamente, em que o mercado não era só uma troca de produtos, era uma troca de informações, era uma troca de relações, uma troca de experiencias e, no caso específico do cinema, não compreender que é um desses veículos que, mais facilmente transpõe as fronteiras, se houver o mínimo de amparo, o mínimo de apoio económico. O exemplo maior que está aí, visível, ratificado e compreendido, é o de que tudo o que é na América, hoje, foi através do cinema, com uma penetração do cinema americano no mundo, a partir dos anos quarenta. Depois da guerra, entraram em todos os países, vendendo o american way of life, vendendo coca-cola, o blue jean e todos os grandes produtos foram vinculados através do cinema, dos seus mitos e das suas histórias. Enquanto os governos acharem que a cultura merece apenas 0,5 % do PIB nacional, isto vai continuar assim. Enquanto não compreenderem que a cultura merece muito mais que isso, vamos continuar a ser países sufocados economicamente. Nem sequer quero dizer que a cultura vai dominar os outros países mas, se quisermos uma independência económica, numa relação de igualdade, tem que ser pelos caminhos da cultura, pelos caminhos do diálogo e pelos caminhos da troca de experiências, que não são simplesmente trocas em percentuais e em números de chifre da fé. É pela troca de valores culturais, que é o que há de fundamental no ser humano, que é o “olhos no olhos” e isso só se consegue através da cultura.
RA; AC - Filmou em Cuba, França, Brasil, Portugal, Alemanha e em muitos outros lugares. A linguagem cinematográfica é universal?
RG - Não, de jeito nenhum. Eu acho que ela está tentando ser uma linguagem universal na redução das suas potencialidades, não no alargamento das suas potencialidades. Como a própria linguagem do romance, ou da poesia, ou da pintura, não é uma linguagem universal pela redução das suas potencialidades, mas justamente pela identidade que essas linguagens vão tendo através dos seus artistas. O cinema só se pode tornar universal, na medida em que cada cinematografia corresponder à cultura do seu próprio país ou da sua própria região ou às suas próprias preocupações momentâneas e históricas. Querer padronizar a linguagem, sob pretexto de a tornar universal, é a mesma coisa que quiseram fazer com o esperanto. Inventaram uma língua que, se toda a gente a aprendesse, podia saber todas e, no fim de contas, é uma língua sem sabor, sem sal, sem pimenta, sem nada que ninguém aprende e que vive na cabeça de uma meia dúzia de pessoas. Nunca encontrei na minha vida, até hoje, e vou fazer oitenta anos, alguém que falasse esperanto. A linguagem universal tem de partir de cada cultura. O cinema tem de ter a sua especificidade. Evidentemente, tem uma matriz básica, que são os elementos específicos da linguagem cinematográfica e esses vão ser os mesmos que, com o trânsito que existe hoje da globalidade e com trânsito dos meios visuais, da multimédia, da televisão, se tornam, numa certa forma, gerais. Mas não é tentando pasteurizar essa linguagem, nem procurando um modelo único de dramatologia e um modelo único de recursos cinematográficos, não é com um único veio de criação que se estabelece uma linguagem universal. O caminho é o contrário.
RA; AC - Nas suas aulas, costuma dizer aos seus alunos que, para fazerem filmes norte-americanos, os ensina em três horas. O que lhes quer transmitir?
RG - Isso quer dizer que, o cinema americano dos anos quarenta e cinquenta, era um cinema muito mais rico, mais vital em todos os sentidos que ele é hoje. Quero dizer que a linguagem da dramatologia aplicada ao cinema americano está, absolutamente, como uma receita de bolos, em que há a maneira de começar, a maneira de acabar, a primeira virada, a segunda virada, o final abrupto, uma série de regrinhas que vêm da Antiga Grécia, mas que são reduzidas e são impostas com rigidez, o que não tem nada a ver com as experiências do teatro Grego. Pelo contrário, colocando um paradigma redutor, esquemático e, dentro dessa fórmula, estão a querer que toda a cultura, de todos os países e da própria cultura americana, caiba dentro disso. E não cabe dentro desse modelo. O modelo do herói, do antagonista, o protótipo do individualista, enfim, os valores da sociedade americana, está incrustado dentro desse modelo. Isto para dizer que é um sistema impositivo e que não retrata nenhuma cultura, nem a própria cultura americana. Esse cinema está a imbecilizar o público, autenticamente imbecilizando o público. É só trocar o advogado pelo cowboy, pelo pirata, pelo padeiro e os conflitos são os mesmos. Tanto que, hoje em dia, é assustador, há um software que escolhe a profissão, escolhe o conflito, escolhe o lugar, onde quer que se passe, num elevador ou num navio pirata ou numa praia, e depois o software faz a historinha sozinho. Quer dizer, estão a robotizar o cinema além de tentarem robotizar o ser humano, e querem que isso seja o cinema que é feito em toda a parte do mundo, quando ainda dão espaço. Os governos de cada país ainda dão espaço para exibição, porque esse cinema, em certos países, na maioria dos países, ocupa 80% da tela, outros 90 e outros quase 100, talvez a França seja o único caso que tem mais de 50% da tela ocupada com produções nacionais. Esse cinema, é um cinema que só está fabricando idiotas e, como o espetador já sabe o que é aquele caminho, vê aquele filme e entende aquele filme muito bem, é digerido muito facilmente e esquecese que o cinema não é para ser só isso. É para ser um divertimento, sem a menor dúvida, mas também para ser muitas coisas mais, além de um divertimento.
RA; AC - Depois de um longo e riquíssimo percurso de vida, de ter vivido as guerras de libertação em África, de ter convivido com artistas franceses precursores do Maio de 68, ter emigrado de África para o Brasil e ficar sujeito à nova ditadura e ainda à Guerra Fria, que balanço faz do mundo de hoje?
RG - Você não facilita a minha vida... Eu acho que há duas atitudes diante da vida. Que não devem partir da racionalidade, devem partir de um ato de sobrevivência ou de fé, não obrigatoriamente no sentido religioso, mas no sentido de uma convicção profunda ou de uma escolha, e que é uma atitude de acreditar, ou não, no futuro. Isso quase tem sido tomado como aporia, em que tanto vale isso como vale o contrário. Você escolhe em que lado é que se quer colocar. Eu coloco-me sempre do lado que me parece mais vital, prefiro acreditar sempre nas possibilidades. Então, eu acho que o mundo hoje enfrenta uma crise, mas o mundo enfrentou muitas outras crises e é evidente que, na contemporaneidade de cada crise, dentro do processo da história, a última que aparece é, sempre, a mais importante, a mais vital e a mais decisiva. Eu não sei se a crise que atravessa o mundo de hoje é isso, pode ser que ainda venham outras piores, pode ser que, depois desta crise, venha um período paradisíaco ou, pelo menos, não tão catastrófico quanto o que estamos a viver, e pode ser que estejamos a criar uma imagem demasiado severa do processo civilizacional como ele é hoje, se o compararmos com outros momentos da história e que foram momentos de grandes crueldades. Não faltam momentos de crueldade na História. O que talvez hoje seja mais assustador, é que essa crise é, a nível mundial, (desencadeada) pelo processo de comunicação que foi criado pela tecnologia moderna. Antigamente, se alguma coisa que acontecia na Europa, fugia para a China, se acontecia na China, ia para o mar do sul, aparentemente, havia refúgios dentro do próprio planeta. Hoje, esses refúgios já não existem e tudo é alcançável, tudo é catalogado. Os computadores encontram-no através de qualquer sistema, dos mais simples sob o ponto de vista técnico, mas eficazes na capacidade de ir buscá-lo ao buraco onde você possa querer esconder-se, e isso, de certa forma, assusta. É um planeta sem guaridas. Se uma catástrofe acontece na China, vai acontecer no resto do mundo. E isso assusta-nos, porque não estamos habituados a essa globalidade. Mas quem sou eu para dizer que isto vai por um caminho de uma possível melhoria ou se vai agravar. Não tenho a menor ideia, nunca tive vocação de profeta e não vou arriscar nada. Mas, pessoalmente, prefiro que cada um faça o seu trabalho de formiga e que lute para que essas coisas não aconteçam. E eu, na medida das minhas ínfimas e minúsculas participações nesse processo mundial, estou sempre de um lado que vai contra aquilo que me parece errado, obstinada e violentamente contra, e não abro mão desse meu direito.
RA; AC - Conhece a realidade cinematográfica Portuguesa e Brasileira. Quais as grandes diferenças de produção?
RG - A grande diferença de produção é a potencialidade do mercado nacional. O Brasil tem um universo de espetadores potencial de quase 200 milhões, Portugal tem 10 milhões. As potencialidades do mercado são, evidentemente, desproporcionais e, tal como o cinema americano se conseguiu impor a partir da guerra de 1914-1918, pela criação de um mercado interno forte, e só depois do mercado mundial, o Brasil também tem capacidade de produzir para uma produção interna e ganhar força suficiente para ter essa produção noutros mercados como, por exemplo, a China, com quem se está a estabelecer relações de mercado noutro sentido. Se se compreender a importância do cinema, o cinema pode desenvolver-se e entrar dentro do mercado chinês com facilidade. Como já aconteceu há uns quinze, vinte anos atrás, com um filme de Nélson Pereira dos Santos, que fez a vida de dois cantores country do interior e que foi um êxito popular na China. Portugal tem a limitação do seu mercado próprio, se não houver um grande apoio estatal e a criação de uma política de negociação e de penetração noutros mercados, estará sempre fechado numa espécie de gueto cultural. Havia um momento que o cinema português me parecia extremamente interessante, não sei se continua, é que, justamente, soube transformar esse gueto num cadinho experimental. Não sei se ainda continua. Por não necessitarem tanto de ir buscar ao público o ressarcimento dos meios envolvidos, que eram, praticamente, meios a fundo perdido, os realizadores tinham a capacidade e a possibilidade de experimentar coisas que, num cinema mais comercial e mais voltado para o mercado, lhes seria vedado. E então, criavam obras que pareciam extremamente importantes pelo seu lado experimental, coisa que um cinema que tenha vocação de mercado fica mais condicionado e que é sempre avalizado pelo número de bilhetes vendidos. Portugal estava de fora dessa lógica comercial mas não sei se ainda continua.
RA; AC - Como explica o sucesso internacional de filmes como Cidade de Deus e Tropa de Elite?
RG - São filmes de acabamento tecnológico que competem nos valores do mercado geral do cinema e são um espetáculo de violência. Tornar a violência num espetáculo sempre deu bons rendimentos. Além disso, são filmes, principalmente o Tropa de Elite que, de certa forma, exaltam a violência, embora talvez não haja intenção consciente por parte do realizador, pelo menos do que conheço, de fazer a apologia da violência. Os filmes em si, dão esse espetáculo da violência e isso satisfaz um público que procura esse tipo da catarse e os filmes têm um excelente resultado. Para o cinema brasileiro, eu não sei se isso é tão útil, porque o sistema de produção americano nunca deixa entrar os filmes estrangeiros no mercado americano. O que eles fazem, é pegar nos autores e levarem-nos. São pessoas que já estão fazendo filmes americanos, quer dizer, preferem pegar no seu talento e porem-nos no seu mercado, fazendo filmes dentro do seu modelo, como fizeram com realizadores de outros países. Têm talento mas não vão para lá fazer isso. Então, acho que é uma ilusão a ideia de fazer filmes para poder entrar no mercado americano, que é um mercado riquíssimo e porque o mercado é extremamente fechado nesse sentido, e para o cinema brasileiro isso não se repercute de qualquer forma, a não ser que tenha êxito no seu próprio país. É o que está a acontecer, porque é mais fácil agradar com a violência do que agradar com algum tipo de reflexão ou outro tipo de preocupação dentro do que a sociedade brasileira possa ter de importante a ser debatido.
RA; AC - Muitos dos seus filmes têm um conteúdo político. Acha que o cinema tem um papel essencial na denúncia das injustiças sociais?
RG - Acho que toda a arte tem um conteúdo político. Umas debatem-no, usam como tema a própria política mas, mesmo aquelas que abordam problemáticas que, aparentemente, não são políticas, o olhar sobre essa problemática filtra sempre uma atitude política dos autores do filme. Uma história de amor pode ser uma história extremamente política. Para dar um exemplo, um pouco imediatista, mas muito evidente, se você faz uma história de amor entre um branco e uma negra, já tem um conteúdo político, com reações dos primeiros racistas, tão vigorosos aqui na Europa, felizmente no Brasil isso está bastante mais diluído, até pela própria mistura das raças e por uma política oficial muito atenta a essa questão do racismo. Quer dizer, toda a obra de arte é política. É evidente que, em certos filmes meus, talvez pela minha génese, pelo facto de ter nascido em Moçambique, pelas condições que já conversámos, o facto de ter vivido a maior parte da minha vida em países ditatoriais, inclusive na França, quando fui para lá, estava lá de Gaulle, com as guerras da Algéria... Parece que tenho a especialidade de me colocar em países que estão em processos de ditadura, depois cheguei ao Brasil, passa meia dúzia de anos e já estou vinte anos debaixo de outra ditadura... Sou muito sensível às relações do poder, do poder politico e do poder económico. Talvez as relações de poder sejam uma constante nos meus filmes e isso torna mais visível o lado político nos meus filmes. Mas acho que não conseguimos escapar de um olhar político em qualquer obra de arte.
RA; AC - Já ganhou vários prémios internacionais, entre os quais um Urso de Prata no festival de Berlim pelo Os Fuzis. Já fez todos os filmes que queria?
RG - Eu não. Eu fiz perto de 30 filmes, entre curtas e longa-metragem como realizador, depois fiz outros como editor, como guionista, como ator, mas isso foram momentos da minha trajetória, momentos de sobrevivência ou de prazer ou de aprendizagem. Por exemplo, acho que o facto de trabalhar como ator foi, para mim, uma aprendizagem para aplicar na direção de atores nos meus filmes. Mas eu queria ainda fazer, pelo menos, mais uns seis filmes, porque fiz quinze longas-metragens e gostava de fazer vinte e uma, acho que é um número razoável. Pode ser que, daqui a pouco, aumente um pouco, se chegar rapidamente a dezoito pode ser que aumente o número de vinte e um. Eu também tinha decidido, há uns quinze anos atrás, que ia morrer com 116 anos. Fiz um cálculo daquilo que queria fazer na vida, inclusive com a minha carreira, que ainda não começou, de escritor, e calculei que 116 anos talvez desse para fazer aquilo que quero. Mas há 4 ou 5 anos atrás, corrigi esse número de 116 para 117. Mais um anozinho, que me pareceu ser mais realista no ponto de vista da trajetória que quero executar. Isto parece ser uma nota de humor, mas é principalmente um ato de vontade. Acho que, se você começa a encarar a vida olhando para a morte, começa a enfraquecer a sua criatividade, o ímpeto, as suas vontades e as suas energias começam a consumir-se. Então, eu prefiro colocar metas, mesmo que pareçam inatingíveis mas que não são inatingíveis, coloco como possíveis e com a certeza de que as vou executar, a não ser que haja um acidente inesperado. Tenho vários filmes que ainda quero fazer e o meu único orgulho, na área cinematográfica, talvez seja o de nunca ter feito um filme que nunca quisesse fazer. Sempre fiz os filmes que queria fazer e os que não queria fazer, não fiz. Prefiro não fazer nada, ficar longos períodos sem filmar mas não faço aquilo que não quero fazer. Para mim, o ato de fazer filmes, a partir do momento que o escolhi, é um ato sagrado, como fosse um crente ou religioso. É um ato de sentido da minha vida e o sentido da minha vida não pode ser conspurcado com momentos de fraqueza pessoal, simplesmente pelo desejo de filmar, pela vontade de estar num set de filmagens, pelo prazer das luzes e do encantamento dos mistérios do cinema, não é por isso que eu me vá sujar com um trabalho no qual eu não acredite. Então, esse talvez seja o meu lado puritano, mas não abro mão de não filmar aquilo que eu não acho que merece ser filmado. Estou sempre na esperança de conseguir filmar aquilo que desejo filmar e que é ainda muita coisa.
* Doutorandos. Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologia; Escola de Comunicação, Arquitetura, Artes e Tecnologias da Informação; Doutoramento em Ciências da Comunicação. 1749 – 024, Lisboa, Portugal. E-mails: Rafael Antunes, rafacine7@gmail.com; António Costa, tony@filme.com.pt