Ruy Guerraprefácios

Palavras do paraninfo: Ruy Guerra




Algumas palavras

Todos nós, nas nossas vidas, temos ocasiões que se tornam especiais.

Para vocês, alunos, para suas famílias e amigos aqui presentes, para todos aqueles que organizaram e participaram destas oficinas ,como professores e palestrantes, certamente esta noite é um desses momentos.

Todos acabam de cumpris uma etapa importante e merecem congratular-se, e serem congratulados, pelo empenho e paixão que manifestaram ao longo da jornada.

Esta noite de encerramento , por isso, deve ser, e é, uma noite de festa, para ser guardada com alegria na memória de cada um.

Mas sem querer botar água no chope e tornar este encontro em algo de grave e solene, há algumas considerações que eu quero dirigir diretamente aos alunos, que de certa forma, assumem, ou ratificam, aqui hoje não , um importante compromisso pessoal e profissional. O de se dedicarem ao cinema.

Para não correr o risco de esquecer algumas coisas que considero importantes e que poderiam ficar perdidas no calor da hora.

Podem ficar tranquilos, não vão ouvir nenhum conselho.

Mas no contexto em que nos encontramos conversando, me sinto no direito de lembrar uma coisa: par ser bem sucedido em qualquer forma de expressão artística, como no cinema ,não basta a sensibilidade , a intuição e o talento. É preciso ser do seu tempo. É preciso saber de onde viemos, par saber quem somos, para falar do presente, do passado , e até do futuro, que é também território da arte.

É indispensável termos consciência clara que nunca estamos prontos, que devemos estar sempre de olhos abertos, bem abertos, vendo, lendo, questionando, vivendo.

Alguns podem dizer, estudando sempre. Eu sou um dos que pode até usar a palavra estudar, mas não apenas na frieza técnica.

Antes queria que soubessem por que é que este momento é tão especial para mim. Por que este encontro além de um ato festivo, além de um ritual de passagem , é também um gesto político importante. Este encontro, no qual todos nós somos atores, faz parte do sentimento político que os fazedores de cinema, ( e aqui uso o termo cinema no sentido amplo de todas as formas de expressão que usam imagens em movimento), podem e devem vir de todas as camadas sociais de um nação, e não apenas de minorias privilegiadas. E que o cinema, como objeto, como filme, pode e deve estar ao alcance de qualquer um.

Todos aqui, estou certo disto, estamos habitados por essa convicção.

Para mim, em termos pessoais, ( e não vai nisso nenhum saudosismo), este momento me remete aos anos 60, quando ainda jovem tateava o ato de fazer cinema e o Cacá Diegues me convidou para montar o seu filme do 5X favela de então, um projeto logo considerado subversivo pelo governo da época.

Imaginar, criar, formatar, participar( no meu caso ainda que pela tangente) do projeto 5X FAVELA, por nós mesmos), é uma prova tangível que nós também continuamos os mesmos, nas nossas utopias políticas e estéticas.

Assim, estar aqui como paraninfo, pela vontade de vocês, é uma prova de carinho que me comove e uma honra que agradeço. Me fez esquecer os meus cabelos (e barba) brancos, e me reforça na convicção que na arte, é uma maneira bela de se viver um vida, quando não se faz dela apenas uma mercadoria. Por que a arte é isso, uma mercadoria, já dizia o velho Brecht, mas mais que tudo acima de tudo, um prazer, uma maneira de viver e um modo de transformar o ser humano.

Não vou falar das oficinas.

Teoria, e o mais importante, que dúvidas e certezas surgiram durante o seu decorrer. Por que a arte Não é feita de receitas, de axiomas, leis, mas sim de contínuos questionamentos e experiências, e o ofício do artesão é aprender como deve ser feito para se fazer o que se faz, para depois fazer de outra maneira. Desaprender, virar as coisas pelo avesso. Quem assim não faz, quem apenas fica no aprendido, corre o risco de virar apenas um imitador. Um imitador até de qualidade, mas um acadêmico, um artista que segue os caminhos já andados.

Mas cuidado: só desaprende quem aprendeu e continua aprendendo, vida afora... e só então , do ato de desaprender , pode surgir o novo.

Estou certo que estas oficinas cumpriram a sua função nesse aprendizado, e uma boa oficina é isso: dar o aprender, sem o qual o salto do desaprender ( o verdadeiro salto da criação) , é um salto no escuro.

Esse salto pertence a vocês.

Sempre que tenho a oportunidade, como é o caso, aproveito para citar o verso de um poeta sobre o ato de criar, a maneira de dar o salto, por me ser impossível falar do assunto melhor de que como ele se expressa. Poderia ser um pequeno e simples poeta, por que quando atinge o poder de síntese e clareza que a poesia propõe, todo o poeta é grande, mas no caso é um poeta maior. Fernando Pessoa , um dos expoentes da poesia de todos os tempos. Ele diz:

“Tenho técnica dentro da técnica, fora dela sou um louco com todo o direito a sê-lo. Com todo direito a sê-lo. Ouviram?”

Ouviram? Eu ouvi.

E se cito este verso até a exaustão, é porque ele contem, um importante aviso aos navegantes da arte, de qualquer arte: é preciso dominar a técnica, mas a loucura( metáfora da criação) é fundamental. Em outros termos: deve-se ser um bom técnico para usá-la a serviço da liberdade de imaginar. Levando ao extremo: de que seve a técnica se escraviza a liberdade de ser diferente?

Ficamos apenas no aprender.

É preciso exercer a loucura.

Propor uma estética – e o nosso mérito foi o de estarmos lá – e atentos. E sem então o conhecermos, termos dentro de cada um o verso de Fernando PESSOA . Tínhamos, sem o saber, a coragem do salto.

O nosso possível talento individual não teria muito significado( outros, tão ou mais talentosos se perderam no caminho) se também não nos habitasse uma profunda certeza, que nos unia cada um a cada um, independente das correntes artísticas que admirávamos: a certeza que tudo o que fizéssemos de pouco valeria se não tivéssemos a vontade e o desejo de trazer para a tela o que víamos como Brasil. Não o Brasil oficial ou um Brasil de clichês ou um Brasil como o estrangeiro dizia que era o Brasil.

Até então a nossa cara cinematográfica estava maquiada pelos filmes de Hollywood. Era preciso fazer cinema sem as cores (deslumbrantes) de um E O VENTO LEVOU; sem a interpretação (deslumbrante) de um Marlon Brando; sem o mise-en-scene (deslumbrante) de Elia Kazan; sem deslumbrantes figurinos, cenários, fotografia, montagem etc... etc...etc....Tínhamos de fugir de todos estes deslumbramentos, por que a nossa realidade er, como é ,outra.

E não queríamos fazer um cinema com sotaque hollywoodiano.

Não por xenofobismo, não na busca de uma pretensa originalidade, mas porque tínhamos a consciência que esse cinema que batia nas telas de todo o mundo (como ainda hoje), nem sequer representava o povo norte-americano, naquilo em que ; ele é povo. E que no dito e na maneira de dizer, os filmes ”made in Hollywood” eram (como ainda hoje ), para inculcar o modo de ser americano, o “ american way life” das classes dominantes, nos fazendo acreditar que o mundo não podia (nem pode) existir sem a coca-cola; que o hambúrguer é a mais saborosa iguaria do mundo; que matar índios era um ato de coragem e fazia parte de um inevitável processo civilizatório; que o padrão de beleza era o platinado de Marylin Monroe; que o american dream, o sonho americano, é o sonho que o mundo inteiro deve sonhar , e por aí vamos. Era preciso encontrar uma maneira de contar que fosse nossa, um cinema de guaraná , maniçoba, feijão preto, vatapá: era preciso buscar um cinema de samba enredo e cordel, onde a terra do sol coubessem os sofridos grandes sertões de retirantes , de cangaceiros e vidas secas; um cinema da grande cidade e suas sociedades anônimas e periferias, um cinema em que matar escravo não fosse um ato de coragem à la John Wayne; um cinema de Zumbi e Ganga Zumba; um cinema de transes, malandros e desafios.

Um cinema que fosse o espelho de um povo, com a sua fala, seus sotaques, suas chagas e suas cicatrizes.

Esse era o nosso desejo, essa era a nossa loucura, um cinema que viveu tanto quanto foi permitido pela história do país. A ditadura nos cortou as asas, mas a marca já tinha ficado com o nome de Cinema novo.

Acreditávamos que tínhamos direito de errar, acreditávamos que qualquer erro seria mais rico do que ser talentosos copistas. E isso sim, sabíamos, que uma outra maneira de olhar a realidade brasileira exigia outras fotografias, outras montagens, outras histórias, outras maneiras de contar. E que era preciso viver essa aventura, por que um povo que não tem os seus próprios contadores e suas próprias histórias, é um povo sem história, é um povo submisso , por que não se olha para si mesmo.

A arte é o bilhete de identidade de um povo, é o seu espelho.

Nós procuramos ser, no cinema , esse espelho, ainda que sujo e embaçado.

O que se espera de vocês , jovens cineastas, não é um novo cinema novo. Esse pertence à história e ao passado.

O que se espera de vocês, jovens cineastas, é um cinema irreverente, crítico, até mal comportado, capenga mais vivo.

O que se espera de vocês , jovens cineastas, é que mostrem a cara.

O que se espera de jovens cineastas é que sejam brasileiros no seu cinema.

Isso é o que eu, pessoalmente , espero...e creio que não estou sozinho nessa esperança.

É uma bela estrada para se caminhar.

Obrigado

Ruy Guerra.