Ruy Guerracontos

No pântano
Ruy Guerra




Lá alto, bem alto nos montes da terra vermelha, onde a Cidade de Cima termina para o lado do mar, as pessoas espalham-se para ver o jogo da bola dos clubes dos brancos. Os negros, mulatos e mesmo alguns brancos que vão a passar pela rua perto e para num bocado ou os que não querem pagar um lugar na bancada sentam-se na areia quente ao sol e olham para baixo.

No campo de jogos os homens pequenos são todos iguais, para quem vai a primeira vez à barreira.Um negro gordo e suado procura um lugar com um pouco de sombra; um branco sentado numa almofada, que trouxe de casa, não tira os olhos do campo rodeado de arvores; mais longe um mulato forte grita como se os jogadores ouvissem, agora, não perde tempo passa a matate homem, já. De espaço em espaço o barulho da multidão tira a gente do morro, foi um golo, grita alguém de cima, dois zero, alegria, protesto, mas logo o apito do arbitro chega atrasado dizendo que a partida começou de novo, e tudo presta atenção lá no alto dos montes da terra vermelha que ficam sobre sobre a Baia de Espírito Santo.

Mais longe, noutro campo, onde a cidade já ficou para trás, num lugar onde houve em tempos um pântano, os meninos feitos homens antes do tempo, correm para a bola do filho do China, que vende foguetes mais outras coisas.E gritam, e saltam, e riem é domingo, há sol, é dia de festa para quem trabalha a semana toda. Os negrinhos, moleques da cidade, e os mulatos e os meninos brancos que vivem longe das casas bonitas com jardim de flores, o teto da casa que moram a zinco e as flores que brincam são os girassóis dos campos donde todos, com o fim na primavera, fazem coroas de enfiar ao pescoço, jogam com muita alegria. Muitos dos que correm atrás da bola no grande campo sem dono do pântano, assim é o nome que lhe dão, são negros crescidos de corpo já feito, mas brincam de novo criança na tarde livre.

Ao voltarem (o sol já caiu) às casas onde trabalham e o branco é patrão, tornam outra vez a ser homem. Por isso aos domingos eles esquecem o serviço, o branco mandando, a semana inteira que vem a seguir. E riem e gritam pela posse da bola no grande campo sem dono O Pântano, os corpos empurram-se em lutas de amigos, são todos iguais. O filho do China, que vende foguetes e é o dono da bola, os moleques da cidade, o mulato que não sabe do pai, são todos iguais na luta pela bola, são todos crianças que brincam. Ali tudo esquecem porque o campo sem dono do Pântano, os donos são eles, só tem lugar para quem brinca, e todos saltam e brincam lá longe no Pântano onde a cidade já não chega mais e os bairros negros se juntam nas palhotas e casas de madeira e zinco.

É lá, bem no Pântano correndo pra bola, que Joaquim Vila passa o domingo também; foi uma vez com Fernando que é moleque na casa do lado e lá voltou depois e outro domingo e mais um. Conheceu o “Gorila “, um negro baixo e forte que trepava melhor nos coqueiros que todos os outros; o João, menino branco, que mora perto ao quartel e deu o nome de Gorila, e mais ainda o Pedro, o Saul e muitos outros mufanas, mas, mais mesmo com todos eles, ele gostou do negro Valentim Julio, que joga mais bem a bola do que ninguém que brinca no Pântano, agora Vila e Valentim descansam sentados no capim baixo e fresco da terra negra, que em tempos teve água do mar.

Eles olham os outros jogando e mais a estrada que corta lá longe o terreno, os comboios do C.A.R, que carregam carvão, deitando fumo negro no céu bonito de azul, veem bocados de navios que ficam naquele lugar mais distante do cais, guindastes, o mar e muito mais coisas também.

Joaquim, o peito a subir e descer da corrida sente alegre a seu lado a presença do amigo; Valentim é um negro da rua, sem casa nem dono, que dorme em todos os lados e come quando tem pão, há muito que não trabalha. Quando algum mufana pergunta porque, Valentim conta que já teve serviço numa casa grande de dentro da cidade, mas depois fugiu, não diz porque, só que fugiu uma noite, já quase de manhã, e nenhum dos moleques da cidade pergunta qual a razão; eles sabem porque se foge. Agora o negro Valentim anda por ai, ele sabe que quando a policia apanha... mas o negro Valentim Julio é esperto, e os vários negros tem muita gente amiga, muito sitio escuro e escondido; nos domingos à tarde ele vai brincar para o Pântano e depois que viu o negrinho Vila ele pergunta: tu tem jeito pra jogar o futebol, tu quer vir comigo? Valentim levantou-se do chão e olha bem nos olhos de Vila, é um negro novo, mais alto, com músculos grandes por baixo da camisa rasgada e suja, ir onde? o pretinho não percebe, negro Valentim ri, um riso alegre que mostra os dentes grandes e fecha-lhe os olhos, depois deita-se no chão e fala e ao som das suas palavras vai ganhando entusiasmo, Vila ouve-o, não entende bem o que o negro da rua lhe diz, só sente a musica da voz e gosta; para os dois negrinhos o jogo da bola, o Pântano, o cais, os navios, tudo fugiu para longe, só eles ficaram, e Valentim conta: tu há de ir jogar futebol noutras terras, lá longe, pra outro lado do mar, tu sabes, mesma coisa Mulato Antonio que joga mais bem que todos os brancos, tu viu ele? aquele tempo eu ia ver todos jogo, mas Mulato Antonio foi embora, tu sabe porque? Vila num sabia, o negrinho continua, porque ninguém joga como ele, Mulato Antonio foi embora no navio, pra mostrar como se joga bola, sua voz agora diz de vagar só para ele, eu também há de ir, um dia, Valentim cala, olha longe, depois pergunta outra vez, tu quer vir comigo? Tu quer? Eu ensino bem a jogar, Vila não responde, fica a pensar, tu vem? insiste Valentim. Joaquim pensa não querer ser jogador e responde: tu ouve Valentim, eu gosto é de você, mas não pode ir, tu não zanga. O negro levanta-se, tá bem, não faz mal, qualquer dia tu vem ter comigo, eu sabe, quando que eu estar aqui todos domingo, cala. No Pântano as crianças brincam, Mario de lá grita, eh Valentim embora, já vai, e para Joaquim, vamos, sem esperar corre para o jogo, eh passa, passa. Joaquim fica sentado a ver.

No campo sem dono do Pântano as crianças brincam, a tarde começa a acabar.