Ruy Guerracronicas

Arco de Triunfo
Ruy Guerra




O público, ou melhor, o grande publico não quer ir ao cinema ver a vida tal como ela é. Quando se senta na cadeira duma sala de espetáculos ajeita-se e atira para trás com as tristezas o que quer é distrair-se, digo abstrair-se da realidade ambiente. Se por acaso na tela se lhe apresenta uma historia que pode muito bem ser a sua, ou a do companheiro do lado, o espectador sai mal disposto, e protesta; ele pagou o bilhete para se divertir e não para se incomodar com os desgostos alheios “para tristezas basta a vida de cada um”. O que querem é musica, comédia, qualquer coisa, desde que a artista seja bonita, o enredo acabe bem, os ambientes sejam luxuosos. Então sim, belíssimo filme, viram?

Cinema arte? Cinema reflexo da sociedade? Baboseira, o cinema não foi feito “senão para distrair”.

E o produtor americano faz que sim; se dizem que esses filmes não prestam, que culpa tem o “ desgraçado do produtor?” é o publico que pede, o resto...e as casas enchem-se, o dinheiro corre para os cofres. É o nunca acabar de Robin Hood, de filhos do Robin Hood, das aventuras da família de Robin Hood, até a 15ª geração. Nessa altura o grande publico aborrece, mas o produtor atento arranja um outro Robin Hood qualquer, e assim por diante, pois se o publico gosta.

Foi com esse receio que fui ver o Arco de Triunfo.Digo, com receio, porque tive mesmo medo que tivessem sacrificado a obra ao comercialismo.

O romance de Erich Maria Remarque trata principalmente o drama angustioso do refugiado em Paris no ano pré guerra de 38; e através de Ravic, medico alemão que o escritor nos apresenta uma serie de quadros da vida das classes inferiores, com alguma alterações absolutamente necessárias a uma adaptação cinematográfica, desde os amores de Ravic e Joan Madou, a vida de ambos em Antibes, a figura de Ivon Haake, a prisão do medico alemão à morte do inquisidor, tudo isso foi respeitado na obra de Remarque.

A seqüência inicial do filme que, ao meu ver, foi a que melhor me deu o ambiente de Remarque, está esplendida, pena foi que não tivessem continuado no mesmo caminho, o de nos dar a vida dessa gente que apenas tocou-se, ficando assim visto ser necessário parte dos amores dos dois protagonistas.

A cena da operação, apesar da simplicidade, está muito bem feita, a mãe que chama pelo filho, a anestesia, o rosto dos operadores com as mascaras brancas, rodando lentamente num ângulo vertical ascendente, a morte da paciente.

È igualmente de notar a maneira como Lewis Milestone nos deu as recordações de Ravic provocadas pela aparição de Haake, adotando o clássico sistema da sobreposição de imagens, conseguiu no entanto, em grandes planos sucessivo, da face do nazi, em travelling, até atingir um big closeup e planos gerais das cenas de tortura, ajudado pelas esplendidas marcas de Charles Laughton, um grande poder emotivo.

A maneira como quebra esses pensamentos que tumultuam a mente do refugiado é igualmente feliz, não pela originalidade, mas pelo vigor,. O cinismo repelente de Haake lamentando a morte da jovem inocente, a reação do torturado, a chicotada e a brusca aparição da mão do prisioneiro, mão de Ravic passando nervosamente pela cicatriz que lhe golpeia a cara.

Charles Boyer mostra-se ai um grande ator, posição que mantem durante todo o filme, a meu ver, conseguiu ser um melhor Ravic do que Bergman em Joan Madou, isso sem querer depreciar o esplendido desempenho da grande atriz sueca, e não levando em conta as dificuldades do papel.

Tirando essas cenas, que me feriram mais a atenção, o filme é tecnicamente equilibrado. A fotografia cheia de sombras, sem que contudo seja escura, é ótima.

As restantes figuras do elenco agüentam-se perfeitamente nos seus pequenos papeis. Exceções feitas ao interprete que encarna Morosow, o porteiro de Sherazade, que vai bastante bem e Charles Laughton cujo desempenho é maravilhoso. A lamentar no entanto, a ausência completa de tantos personagens. Os dois médicos que ilegalmente usam o serviço do Dr Veber, um dos quais o explora e aproveitando-se da sua situação de já o saber, não aparece, ou melhor aparece apenas (...?) e não chega a marcar uma posição, só quase para lançar a duvida no espectador que não entende, por exemplo, porque é que Ravic foi preso por não poder exercer a sua profissão, trabalhando no entanto, num hospital moderno como era aquele em que se vê operar.

Não teria sido preferível antes a presença do Dr Durand que é muito mais significativa, assim poderiam mostrar como de fato o refugiado alemão arranjou dinheiro para as férias em Antibes sem a falsidade daquela frase de Ravic: “vou abrir a barriga a um velho rico e tiro de lá o dinheiro”.O espectador desprevenido fica convencido que Ravic é um medico sem preocupações monetárias, a quem basta uma operação para poder fazer passeios caros.Infelizmente o argumentista não procurou seguir a obra de Remarque senão ao que diz respeito aos amores de Joan com o medico alemão e a perseguição deste ao compatriota nazi; é por isso que apesar da fidelidade, por vezes exagerada ao romance, o filme de Milestone não consegue ser senão uma pálida idéia do que Remarque escreveu, ou antes, não é mais do que uma parte do romance, mesmo essa incompleta. É o caso de não nos darem a morte de Joan um ano depois de operada por Ravic.

Não posso compreender a omissão dessas cenas, tão coerentes com a diretriz dada ao filme; pretendiam dar mais emoção pela brusca revelação da morte de Joan? Se foi assim não conseguiram mais que um fim precipitado.

A restante parte da obra de Remarque que nos conta a vida do refugiado, das classes pobres, dos bordeis, esta não foi sequer abordada, ou quando assim aconteceu é apenas para uma ligação de cenas; são no entanto, esses problemas e a maneira como são tratados que erguem o Arco de Triunfo de Remarque. São personagens como Rolande, a governante da casa das prostitutas do Osiris, como a hoteleira do Internacional que se arrisca abrigando toda aquela multidão de refugiados como a família Goldberg, Rosenfed, e tantos outros, como a costureira Luciene que Ravic salva da morte quase provocada por uma tentativa de aborto e a prostituisse por um cárcere qualquer, como a “Madame” Bouché, abortadeira, como a enfermeira Eugene que denuncia Ravic e tornam Arco de Triunfo um quase retrato de Paris de 1938.

Com que vigor o cinema nos poderia ter contado casos como o do rapazito de 13 anos a quem um automóvel esmaga a perna e após a operação pergunta ansiosamente: O senhor amputou a minha perna? E quando sabe que ela foi cortada acima do joelho e por isso o seguro terá de lhe dar uma pensão vitalícia, a ele e a sua mãe exclama: afinal de contas bem que a gente tem sorte algumas vezes, não é doutor? Nessa simples frase que misérias e privações não se revelam? E tantos outros.

O argumentista infelizmente não ligou importância a esses casos ou não lhes poude ligar. Em compensação deu-nos um enredo interessante que com bons atores, magnífica técnica e esplendida partitura musical, chamo aqui atenção no que diz respeito a musica para o clou da perseguição de Ravic que entre a multidão e de um modo geral para que sempre que aparecia em cena o ator Charles Laughton.

E é tudo, quem quiser ter visto um filme bastante acima do comum da atual produção americana devia ter ido ao Manuel Rodrigues ver o Arco de Triunfo, mas um Arco de Triunfo que não é o do escritor Erich Maria Remarque. Isto, nunca.