Ruy Guerracronicas

Esta janela
Ruy Guerra




A janela de um décimo quarto andar.

Desta janela eu vejo ciganos, portugueses, caboverdianos, angolanos, brasileiros. Eu os identifico pela memória de quando também ando por lá, rastejando.

Desta janela, sonolento nas minhas tardias madrugadas, eu vejo o verde de uma mata, um tanto roída pelas primeiras barracas de zinco de uma incipiente favela, e longe, com brilhos cada dia distintos, as águas do rio.

Daqui desta janela, o braço direito fisgado pela dor aguda de uma talvez bursite, enquanto espero que o meu Macintosh Powerbook, 10 megas de Ram, exploda na tela do monitor de 14 polegadas as 256 cores dos meus delírios e convicções, enquanto o cérebro noturno se espreguiça e abre vagarosamente as circunvoluções à luz de alguma eventual idéia, eu olho esta cidade nova para mim, deste país que eu só conheço pelos livros e por que me foi contado por meus pais desde a minha infância.

Daqui, desta janela, eu olho Lisboa.

Não toda a Lisboa, nem parte, nem o pedaço mais representativo e nem certamente o mais importante - se é que há um. Apenas este ínfimo pedaço.

Mas aqui desta janela, fumando a guimba amarga de um charuto sem marca das Canárias, nostálgico do Pimentel Número Dois Escuro, de Cruz das Almas, Baía, companheiro de tantas insônias, procuro compreender o que é estar no Velho Continente.

Já andei muito por estas bandas, por estes países ditos desenvolvidos, mas sempre com a certeza inequívoca de ser alguém em trânsito.

Hoje, daqui desta janela, eu busco uma emoção diferente: convencer-me de que o aqui e agora tem a eternidade de uma escolha. Mas sei que me estou enganando, por muito que esta janela me acarinhe e que a paisagem não me agrida. Seria preciso rasgar-me muito fundo, apagar memórias e tristezas, trocar sotaques a emoções, transformar sentimentos em raciocínios frios. Ou renascer, o que só acontece nas novelas.

Como todo o português, mesmo de segunda classe pelo estigma colonial, nasci emigrante. E como tantos, cumpri a fatalidade e saí mundo afora.

Eu, para quem a nacionalidade- sentimento sempre adiado- foi sempre e somente um passaporte azul, carimbado pela vergonha histórica do salazarismo, vivo agora a violenta necessidade de querer me encontrar dentro dessa abstração.

É isso que eu busco, aqui desta janela.

Por que não dá mais para fingir que sou moçambicano, se não voltei para as acácias rubras da minha infância, se não aceitei o cotidiano feroz da Independencia. E no entanto, sei que sou moçambicano.

Por que não dá mais para fingir que sou brasileiro, mesmo se acumulei décadas de verde-amarelo na carne, mesmo se tive filhas e paixões brasileiras, mesmo se é nas águas do Tuatuari onde eu gostaria que fossem lançadas as minhas cinzas, num amanhecer de brumas. E no entanto, sei que sou brasileiro.

Por que não dá mais para fingir que sou português, se sempre fugi dessa metrópole distante que marcou a minha juventude, a ferro e desprezo, cinco quinas no peito e braço estendido na Praça Mouzinho de Albuquerque. E no entanto, sei que sou português.

Daqui desta janela, quando a noite chega e Lisboa se anula com as suas luzes anônimas de grande cidade - mesmo se me posso imaginar em Maputo, Rio, Havana ou qualquer outro ventre - sei agora que não posso mais enganar-me, porque estou inexoravelmente só, com a minha esquizofrênica latino- africanidade.

Como é doloroso ser um eterno esquartejado, um eterno estrangeiro dentro de si mesmo. "Amarrado ao próprio cadáver".

Me resta o idioma como pátria, como ao Poeta.

E o sentimento do mundo, como ao outro.

É muito.

Eu diria que é demasiado.

Me resta esta janela.