1.
Estavam sentados a uma mesa de café, lá fora chovia.
2.
Ele era um jornalista qualquer, de um dos jornais da cidade, nas horas de folga escrevera um romance estranho sobre um bar, um bar de vidas, num ambiente de amor e maldade. O livro depressa ficou pronto, mas nunca foi editado. Ele continua a fazer reportagens sobre batizados e casamentos. Mas quando estava livre, à noite, escrevia romances. Ficava assim sentado para ali, à mesa dum café. O tempo passava, e lá fora debaixo da chuva a gente passava também, apressada.
3.
Ela... ele não sabia quem ela era, nem nunca tentara fazê-lo, sabia apenas que se chamava Guida, mas o nome não lhe dizia nada.
4.
Tinham se conhecido por acaso nem sabiam mesmo como!...tinham começado a falar talvez...habituaram-se depois a encontrar ali, naquela mesa, naquele café, um acordo sem compromisso, conversavam, sobre pequenas coisas, outras vezes ficavam assim calado um em frente ao outro, eram ambos sós. Ter a companhia desinteressada de alguém era para eles um conforto e ali ficavam ate um se levantar e seguir a sua vida.
5.
Há alguma coisa que te preocupa? Perguntou Guida e ficou surpreendida do caráter intimo da sua pergunta, de fato nunca haviam falado de nada que pudesse aludir à vida particular de cada um, mas ela estranhara naquele dia o companheiro, apesar do costumado abandono do corpo, do habitual desalinho do vestuário e mutismo, havia um brilho desusado no olhar, brilho quase ferveiro.
6.
Ele não respondeu logo, fixou a chuva que caia, molhando as ruas e casas, no seu olhar havia mais que a imobilidade de um olhar distante; por fim falou de vagar como se as suas próprias palavras lhe doessem.
7.
Fui encarregado de uma reportagem especial, sobre: “Lourenço Marques, Cidade Moderna”, a cidade em si, a sua vida, a sua gente;, corri- a de ponta a ponta, e depois escrevi sobre o Museu Álvaro de Castro, a originalidade e arte da disposição dos animais imóveis, mas vivos, foquei admiração e reverencia elogiosas dos turistas em face deles, aproveitei a altura e descrevi o Palmar na época de verão, o pitoresco panorama humano e a quantidade de variedade das barracas dos ingleses acampados. Falei na Praia da Polana, do Clube Naval, com seus barcos de velas brancas num oásis colocados num autentico deserto de verdura, na Costa do Sol, no Peter. Descrevi as quentes manhãs de domingo, o movimento sadio dos banhistas, a beleza da Estrada Marginal, a aragem suave da brisa marítima. A nota interessante da doca dos pescadores com seus barcos, envolvida por uma fila de palmeiras. Desci para a parte baixa da cidade após haver falado e descrito os diversos bairros como a Carreira de Tiro que “acorda ao som do clarim”, a Polana, a Maxaquene, o Alto Mahé, o Bairro da Astas, a gente que trabalha, a Malhangalene, etc., Citei os modernos exercícios de linhas estéticas como a Fonte Azul, o Prédio Coimbra e tantos outros. Enumerei os cinemas, destacando as diferenças de decoração e arquitetura, desde Varietá, o mais antigo ao Manuel Rodrigues, inaugurado pela companhia teatral Aurea Abranches; falei nas lojas, casas, rua, monumentos; mencionei tudo que havia de moderno, desde a Catedral de linhas esguias, ao Paço do Conselho imponente na sua solidez. Não me esqueci dos hotéis numerosos, mas insuficientes na época turística; o Polana com a sua piscina, o Aviz, elegante e alto perto do Girassol, original na sua forma cilíndrica, e tantos outros. Escrevi sobre as escolas, sobre o Liceu atual e o em construção, como um dos futuros melhores do império. Escrevi o movimento do Porto e seus navios e sua gente, sua situação de privilégio como o melhor da África Oriental, e o segundo de toda a África, os caminhos de ferro, os correios; o D.E.T.A., com suas carreiras aéreas, os bairros indígenas...Tudo, mas...
8.
Fez uma pausa de olhos no copo vazio – Apesar de tudo, e a sua voz era de desanimo, houve qualquer coisa de importante que falhou, não sei o que seja, mas li e reli a minha reportagem e não consegui descobrir uma falta, mas é uma descrição que soa a falso, é como que um bonito ramo de flores...sem aroma. E calou-se. Pensativo.
9.
Guida fitava-o, por fim falou: já leste o Ladrão Escrupuloso? O jornalista levantou a cabeça surpreendido, falou: não, O .Henry, é o mesmo, já, por que? Ele lá fala o que falta ao teu artigo, tu falastes todas as construções, obras e belezas naturais, mas não ouviste a “Voz da Cidade” – A” Voz da Cidade?” - Sim, cada cidade tem como que uma voz, uma voz que conta a sua vida interior, uma cidade não é como muitos pensam, um amontoado de casas e ruas, e que descrevendo essas casas e ruas está descrito uma cidade, é mais que isso, algo gigante formado por pequenas ilhas, e esse ser tem um sentir, um sentir que não é o mesmo das outras cidades, um sentir que varia de acordo com as pequenas vidas que o compõem, mas que é diferente; é preciso para descrever uma cidade de escutar esse sentir, a sua “Voz”, no dizer de Oliver Henry.Ele ouvia com atenção. Guida prosseguiu:” E´isso que falta ao teu artigo, só isso, tu não ouviste “A Voz de Lourenço Marques”; tenta ouvi-las se fores capaz a tua reportagem será perfeita.
10.
De vagar, ele levantou:” É, tens razão”, murmurou, eu não ouvi a “Voz” de Lourenço Marques; mas vou ver se a oiço. Apertou a mão da rapariga, afastou-se. Guida viu perder-se na chuva que caia. Consigui-lo-á? Pensou, há de conseguir e sorriu confiante.