Ruy Guerracronicas

A sombra da globo e a visão estroboscôpica do cinema brasileiro
Ruy Guerra




A visão estroboscôpica da rã apenas lhe permite ver sombras: a dos insectos que a alimentam e a dos predadores de quem tem de fugir.

O cinema brasileiro parece uma rã. Vive no meio de sombras. Tempos atrás as sombras colloridas jogaram os cineastas no pântano. E agora se assustam com a sombra da Globo Filmes, da TV Globo, que anuncia a sua majestosa entrada no cinema.

No Festival de Gramado me encontro com Marco Aurélio Marcondes, velho combatente do cinema brasileiro na área da distribuição, chamado a assumir um cargo de direção na jovem Globo Filmes.

Estávamos perto de um refletor e Marco Aurélio abriu os longos braços, como uma águia, e nunca me senti tão rã debaixo de sua imensa sombra. Ainda assim expus algumas preocupações. Eloqüente e tranqüilizador, Marco Aurélio me assegurou veementemente que a Globo Filmes vinha para somar, abrir mercado de trabalho e ajudar na conquista do público, velha ambição dos cineastas brasileiros.

A minha visão estroboscópica insistia em se apavorar com aquela mastodôntica sombra bem falante. Com um coaxar tímido, insisti:

- E os atores? Corre por aí que só vão ser liberados para os filmes da Globo.

A sombra sacudiu a cabeça:

- Tudo mentira. Quando voltarmos para o Rio vou ligar para o Daniel Filho e a gente conversa. Você vai ver que não é nada disso...

Me deixou com um abraço fraterno, que pretendia espantar todos meus sombrios fantasmas.

Na maioria dos países considerados desenvolvidos não é permitido que uma rede de televisão seja também uma produtora cinematográfica. A legislação francesa, por exemplo, é tão atenta à possibilidade da criação de qualquer tipo de monopólio que nem sequer permite que o simples sócio de uma agência de atores seja também produtor. Nos Estados Unidos, as leis americanas determinam que somente metade da programação própria seja da cadeia de televisão, sendo os restantes 50% obrigatoriamente preenchidos pela produção independente. O que faz da Rede Globo , a quarta "network" mundial (depois das americanas CBS,NBC e ABC), a primeira em produção. Como aqui no Brasil as leis são inexistentes no que diz respeito à concentração dos meios de informação, sob um ponto de vista estritamente legal a Globo Filmes tem todo o direito de existir. Mas como não podia deixar de ser alvoroçou as rãs cinematográficas, que têm teimado em sobreviver, e que buscam agora entender o significado da entrada do gigante nacional da comunicação nas águas rasas do cinema brasileiro.

Depois de muito penar estou preparando a filmagem de "Estorvo", do romance de Chico Buarque.

Um ator pressentido, em férias televisivas, confirmou seu interesse em interpretar um dos personagens, mas avisou que a Globo devia autorizar sua participação.

A diretora de produção do filme, depois de vários faxes e uma via crucis telefônica através de cinco escalões da "Rede Globo", teve finalmente a resposta. O fax da "Divisão de Recursos Artísticos" autorizava a participação de seu contratado na obra cinematográfica "desde que nos seja garantido, pelo produtor desta, através de correspondência a nos ser enviada, que:

(i) durante a vigência de nosso contrato de prestação de serviços a obra cinematográfica antes referida, que contará com a participação de seu contratado (nome do ator), não seja exibida em televisão aberta no Brasil sem a nossa expressa e por escrito anuência;

(ii) a partir do momento em que não mais tenhamos qualquer vínculo contratual, seja assegurado à TV Globo Ltda. o direito de opção de compra, em igualdade de condições ofertadas por terceiros, dos direitos de exibição em televisão aberta no Brasil da obra cinematográfica acima citada; e

(iii) à TV Globo Ltda, ou a qualquer empresa por ela indicada, seja sempre assegurado o direito de opção de compra, em igualdade de condições ofertadas por terceiros, dos direitos de exibição da obra cinematográfica em questão em televisão por assinatura ou via o sistema "pay-per-view" no Brasil".

Quer dizer: pelo simples fato de usar um ator da Globo, ainda que durante o seu período de férias, o produtor de "Estorvo" tem de alienar os direitos televisivos do filme que produz e entrega-Ios, de mão beijada, à Rede Globo, sem nenhuma garantia de exibição ou compra.

A sombra da Globo é uma realidade ameaçadora, ou somos nós que inventamos predadores com nossa visão estroboscópica?