Ruy Guerracronicas

O paladar da revolução
Ruy Guerra




Há cinco anos atrás, comer em Havana, era um problema sério. Não me refiro unicamente aos cubanos, a maioria dos quais limitada ao carnê alimentar, que Ihes dá direito a uma alimentação básica - raramente provida de carne de vaca, artigo de luxo por estas bandas - mas até para o turista ou estrangeiro residente. Ou para qualquer um que tivesse dólar, a segunda moeda oficial do país.

Os poucos restaurantes existentes, além de caros, eram na sua quase totalidade, de uma qualidade apenas aceitável.

A liberação do uso do dólar para o cubano - até então severamente proibido -, permitiu a criação de restaurantes caseiros, os já famosos paladares, que proliferaram com uma velocidade surpreendente. Para o brasileiro, não deixa de acrescentar um certo sabor saber que esse nome surgiu a partir da novela de televisão "Vale Tudo", que teve aqui um grande êxito, como quase todas as telenovelas exibidas.

Os paladares são estritamente vigiados e obedecem' a regras difíceis de entender para um estrangeiro. Sendo propriedade privada, só podem servir a 12 fregueses de cada vez. Por que não 13 ou 11, ninguém sabe explicar. Não podem também servir carne de vaca, nem camarão, lagosta. E do mestre cuca ao que lava os pratos, tem de ser tudo executado por mulher, marido, filhos, tios, primos. Qualquer desrespeito a uma destas condições implica em multas severas e eventual encerramento do paladar.

A maioria dos paladares obedece ao rigor da lei. Mas já fui a paladares clandestinos .- um deles, extremamente requintado, no atelier de cobertura de uma conhecida pintora, foi servido um jantar meio oriental, totalmente fora dos parâmetros alimentares permitidos. Para entrar parecia uma operação de guerra: esconder o carro numa rua paralela, as portas sucessivamente abertas por controladores que nos espiavam pelas frestas, e só quando se convenceram que éramos inocentes turistas e ,e só quando souberam quem nos tinha recomendado, nos deixaram entrar.Ontem, minha filha Janaina me arrastou para um dos paladares de sua predileção, de que eu já tinha ouvido falar pelos taxistas, que recebem sua comissão quando levam alguém. O dono é um antigo motorista e ex-coronel da reserva. E mais que tudo, uma pessoa encantadora. A comida, excelente; o ambiente, de extrema simplicidade, agradável; o papo com o proprietário, enriquecedor.

Conversamos longamente e me encantou constatar a extrema clareza de suas posições. Apesar de viajado afirma em alto e bom tom que seu lugar é na sua terra sem criticar os que vão tentar a vida no estrangeiro, como sua filha maior. Defende sem fanatismos as conquistas da revolução, no âmbito da saúde, da educação, e se declara fidelis ta até ao tutano, "cubano, cubaníssimo, cubanissíssimo".

- A política de agora é boa. Ruim era a anterior, quando todos os milhões que vinham da antiga União Soviética eram desbaratados, a torto e a direito, tentando exportar a revolução, ajudando países que agora nos ignoram.

E por aí foi, acusando o machismo cubano que descrimina os homossexuais, lembrando que a Cuba de Batista, que ele conheceu, era um imenso prostíbulo com mais de 300 mil prostitutas cadastradas numa população que era a metade de hoje; que as "gineteras" são uma ínfima percentagem da juventude cubana, moças exploradas por turistas sexuais, deslumbradas por uma noite numa boate ou um presente insignificante; que a propriedade privada tem de ser controlada para evitar a entrada em massa dos ricos cubanos exilados, revanchistas; que o rigor fidelista é necessário para evitar que Cuba se torne uma nova Rússia, dominada pela máfia...

Já noite, antes de sair, resolvi provoca-Io:

- A lagosta que nos serviu estava deliciosa. Mas você não está desrespeitando a lei? Sacudiu a cabeça, enfático:

- Sou um revolucionário. O dever de um revolucionário é de fazer sempre a revolução.

Seu sorriso não era de esperteza, mas de convicção.