Acordei cedo.
Fui direto à porta de entrada e recolhi os jornais do dia. Mesmo quando não os leio imediatamente, como hoje, gosto de saber que eles estão ali. Claro que não resisto a uma rápida olhada às manchetes da primeira página, mas geralmente não vou mais longe. Às vezes só os abro depois do jantar.
Hoje, como não tinha que sair de casa, tomei o meu café enfrentando as notícias. Uma delas, certamente não a mais importante, me cravou uma angústia no peito.
Me vi subitamente em Moçambique, 23 anos atrás, quando da Independência. Para ser exato, 25 de Junho de 1975. Ou seria Julho? Não importa.
Tinha saído de lá em 1952 - outros exatos 23 anos -, pensando jamais voltar. E a emoção do regresso era grande, para não dizer desmedida. Voltava aos lugares da minha infância num momento de euforia nacional, com meus frágeis e descabidos sentimentos de menino tardio.
Logo, os choques: no aeroporto, o abraço fraterno e apertado de um amigo de meus tempos de muito criança, de quem não conseguia recuperar o rosto e a sua lembrança, para além das rugas e da calvície; o imenso e imponente prédio dos Caminhos de Ferro, subitamente de uma raquítica pequenez; e as mortes. Um rosário de mortes, sistematicamente relembradas por minha irmã, ansiosa de me por a par de acontecimentos de que estivera tão distante durante esse longo período:
- Lembras-te do Sr. Souza e da Dona Hermengarda? Morreram. Lembras-te do Senhor Rodrigues, o marido da Dona Flora? Também morreram. O Senhor Ramos também. Antes já tinha ido a Dona Aida, o que o deixou muito abalado. E...
Agüentei firme, por que havia também muitas alegrias. Os rostos felizes nas ruas, as raças misturadas, o velho Cinema Scala - antes com apenas um mísero cubículo no fundo do primeiro balcão para os assimilados, que viam emparedados o filme - agora com negros e brancos lado a lado na platéia, dialogando entusiasmados com os personagens da tela:
- Cuidado, pá, que ele está armado...
-Não acredita nela, ela tá te enganando...
No meio desse retorno a imagens e cheiros esquecidos, a tristeza dos nomes.
A nova realidade rebatizara quase tudo: ruas, jornais, salas de espetáculo; a começar pela própria capital do país - o que me pareceu justo -, que perdeu o nome do primeiro navegador português que pisou aquelas areia, e recuperou o nome nativo de Maputo. Mas como reencontrar o velho cinema ""Gil Vicente" (um prestigioso dramaturgo galaico-português de tantos séculos passados) sob o nome de "Madjeje",que nem a minha irrestrita adesão ao processo da independência identificava? E como repassar a afetividade dos nomes das ruas e locais de minha infância, pelos dos revolucionários de agora? A minha infância se diluira irremediavelmente na longa ausência e nas novas identidades. Felizmente, a praia da Polana resistiu; e também a Costa do Sol, com seus camarões com piripiri; mas até agora não identifico a rua Elias Garcia (que nunca soube, nem saberei, quem foi) como a Avenida. Karl Marx (ou será Avenida Eduardo Mondlane?) - se é que já não mudou outra vez de nome, face à nova situação moçambicana, deixando novos órfãos, de outras infâncias.
A notícia de hoje, que me arrancou do fundo de mim estas amargas recordações, foi a mudança do nome do largo da Lapa para Nelson Gonçalves.
Ninguém discute a validade de homenagear um artista como o grande cantor recentemente falecido.
Mas não mexam na Lapa.
Seu nome não é apenas um nome. É toda uma história - com seus personagens, sua boemia, sua memória, seus nelsons gonçalves e madames satãs -, é todo um passado, é toda uma afetividade, agarrados a essa identidade.
O imaginário da Lapa só pode viver com o nome de Lapa.