Ruy Guerraentrevistas

AOS 90 ANOS CINEASTA RUY GUERRA ESCREVE SEU PRIMEIRO ROMANCE, CRITICA DESMONTE DA CULTURA E AFIMAR "VAMOS SAIR DESTE BURACO"
Ruan de Souza Gabriel




“Não nos deixemos abater. Mentalidade de vencido já é meia derrota”, diz Ruy Guerra antes de desligar o telefone. O cineasta completou 90 anos em 22 de agosto e, apesar de alguns problemas de saúde e financeiros que enfrentou recentemente, não perdeu a vontade de lutar. Diretor de jóias do Cinema Novo como “Os cafajestes” (1962) e “Os Fuzis” (1964), Guerra nasceu em Moçambique e vive no Brasil desde 1958. E diz assistir apreensivo ao “assassinato cultural” que, segundo ele, vem sendo promovido no país.

Em agosto, o instituto Moreira Salles adquiriu parte do acervo de Guerra, composto por cerca de 1200 fotografias, 600 cartas trocadas com grandes nomes da cultura como Cacá Diegues, Glauber Rocha e Mario Vargas Llosa, e 400 itens da produção literária do cineasta: roteiros, letras de música, contos, poemas. (“A venda vai me permitir pagar algumas dívidas e ter um respiro”, conta ele). Também vão para o IMS (que abriga os acervos dos escritores Érico Veríssimo e Ana Cristina César, entre outros) cópias de documentos produzidos pelo Departamento de Ordem Política e Social, o Dops, que relatam a censura à obras de Guerradurante a ditadura militar, como o espetáculo “Calabar: o elogio da traição”, parceira com Chico Buarque, em 1973.

Colaborador de compositores como Francis Hime, Edu Lobo e Gilberto Gil, Guerra cresceu sonhando em ser romancista. Meio por acaso, enveredou pelo cinema. Em entrevista ao GLOBO, ele contou estar trabalhando em seu primeiro romance, afirmou que o espírito iconoclasta do Cinema Novo permanece vivo na produção brasileira e garantiu não estar deprimido:

- Vamos sair deste buraco.

Você já disse que seu sonho de infância era ser escritor e que começaria sua carreira de romancista aos 100 anos. Você acabou de completar 90. Já está se preparando para virar escritor de vez?

Quando era menino, em Moçambique, havia só quatro salas de cinema e ainda não havia televisão. Crescíamos voltados para a literatura, os romances, a poesia e a filosofia. Éramos leitores e trocadores de ideias. Quem tinha uma vocação mais estetizante, não queria ser médico ou engenheiro, encontrava uma resposta na literatura ou no ensaio crítico. Sempre achei que ia ser escritor e continuo querendo ser escritor. Estou escrevendo um romance, chama-se “Tempo à faca”. É uma história de vingança que se passa no Nordeste. É baseada num roteiro que eu escrevi e quero filmar no começo do ano que vem.

Como o cinema roubou o lugar da literatura na sua vida?

Desde garoto eu ia ao cinema ver filmes de bangue-bangue. Uma vez, eu devia ter uns 11 anos, passei na porta do cinema Escala, o maior de Lourenço Marques (atual Maputo, capital de Moçambique), e estava acontecendo uma sessão aberta de um filme que não tinha passado no circuito comercial. Era “Cidadão Kane”, de Orson Welles! Quando comecei a escrever críticas, ganhei, do dono do cinema, um passe livre para ir a quantas sessões eu quisesse. O pai de um amigo tinha uma câmera 8 mm que nós roubávamos para filmar as corridas de touro que aconteciam uma vez por ano. Quando terminei o liceu, queria estudar cinema na Itália, estávamos no auge do neorrealismo, mas lá os estrangeiros só podiam ser ouvintes. Por isso fui para a França, mas nunca gostei de lá.

Por quê?

Sou muito crítico do passado colonial e do conservadorismo francês. Nunca me deslumbrei com Paris. Era o cara chato que só falava mal da cidade. A França deu sua contribuição ao processo civilizatório e tem grandes escritores, mas sua burguesia é muito egoísta. Depois que saí da França, só voltei a trabalho. Cheguei ao Brasil em 1958, aos 27 anos, e decidi que era aqui que queria ficar. Também não me dou muito bem com São Paulo. Não é que eu não goste, mas é muito asfalto, muito prédio. Sinto falta do mar. Preciso da praia, de espaços livres. Mesmo em casa, sinto a presença do mar logo ali.

Como está a sua saúde?

Fiz 2 cirurgias na próstata no ano passado. Minhas pernas ficaram paralisadas depois das cirurgias, mas já recuperei uns 80% dos movimentos. O mais importante é que minha cabeça está boa. Minha memória é ruim para nomes, mas, de resto, está melhor do que quando eu tinha 18 anos. Tenho energia e não estou deprimido. Estou alegre porque sei que vamos vencer. Vamos sair deste buraco. Vou lutar com todas as armas que tiver e sei que vou estar do lado vencedor.