Ruy Guerraprefácios

Fala do Mérito Cultural
Ruy Guerra




A arte, é antes de tudo, uma necessidade do ser humano. Como a água, o sexo, a amor.

A arte, em todas as suas formas de expressão, é o espelho de um povo.

A verdadeira arte, não é um objeto de sedição nem insulto, apenas reflete, e devolve ao povo a sua própria imagem.

É nessas imagens, que de corpo inteiro, em pranto, riso, perplexidade, o povo se molda, se encontra, e forja a sua alma, com suas grandezas e mazelas, com a infinita beleza do seu andar sofrido e a desmesura de suas despropositadas alegrias.

Nesse espelho fragmentado, embaçado, sujo de tintas embaralhadas, sílabas balbuciadas, notas que ricocheteiam ao vento – ele se compreende. E se faz povo.

Aprende o que é, e sente, e faz.

Um povo, qualquer povo, não pode abrir mão de ser livre. Dar a outros o cinzel que o esculpe. A arte, como qualquer mercadoria, se exporta, se importa, e se digere como qualquer boa farinha – por isso ela é universal e uma fraterna estrada entre os povos. Mas vira veneno, quando diz o que devemos ser, qual o desenho de nosso rosto, a grossura de nossos lábios, o que devemos pensar e o que devemos cantar, só no nosso quintal, à luz da nossa lua, queimados por nosso sol, podemos aprender o que queremos ser. E ter orgulho de nosso próprio nariz, tenha ele a forma que tiver.

Sem sua própria imagem, o povo não é um povo, não tem Eu: é apenas um número, numa cela escura.

A arte de um povo é isso.

Contar, cantar, pintar, dançar suas alegrias, desejos, delírios. Mas sem medo de pôr a nu suas cicatrizes, misérias e fracassos – que uma história verdadeira não vive apenas de flores e amor – e uma história assim, só pode ser contada por quem a vive.

Quem caça ursos não sabe da emoção do plantador de milho.

Um povo, sem suas estórias, não tem história, é um povo sem memória: e o futuro, nesses descaminhos do tempo, não existe sem a presença viva do passado.

Não há neto sem avô.

Sem o espelho da arte, o povo desaprende, se extravia, dizem-lhe o que ele é, o que não é, o que deve beber, comer, do que deve rir, a que horas acordar, o que deve sonhar... e nos tornamos, todos, pasto dos abutres.

Daqui a dalém mar.

Faz este ano exatos 50 anos que pisei pela primeira vez no Brasil, e não por acaso.

E fiquei.

Se escolhi o Brasil como minha pátria e mátria cultural, se escolhi o Brasil como terra de meus amores, como terra de meus desejos, terra do meu futuro – foi por que à sombra do meu imaginário, meu e de toda uma geração de moçambicanos marcada pelo estigma do fascismo – o Brasil não era a terra prometida (já então não éramos tão ingênuos!) mas um possível espalho de construção da liberdade que nos era negada. Terra que tinha o mesmo cheiro de manga e o mesmo sabor de mandioca da nossa infância; terra com a mesma pele negra de minha mãe Rosa. Com quem aprendi as primeiras palavras, mesclando xangane e português, e que me marcou de sotaques vida afora; terra que conhecíamos de lés a lés, de trás para diante, lá, perdidos na costa africana do Índico; uma terra trazida, sem tradução, nas vozes de Portinari, Ari Barroso, Manuel Bandeira, Jorge Amado, Caimmy, Zé Lins do Rego, Monteiro Lobato, Sérgio Buarque, e tantos mais. Vozes de pés no chão e palavras lúcidas, inquebrantáveis na busca de uma generosa utopia igualitária. Vozes que ne levaram a perseguir o rumo dessa paixão maldita, anacrônica, teimosamente viva na vigília de todos os que sonham.

É da natureza do artista – como o escorpião – cumprir seu destino, ainda que muitas vezes inglório e amargo.

Por isso, e para isso, ele é.

Com um hipotético copo de cachaça, que já deu de beber ao santo, saúdo todos os que sabem, num saber simples, que a mão do poeta é igual à mão do sapateiro, e que sapato e poema, objeto e imagem, só existem, por que são a mesma coisa.

Sem um, o outro morre.

Brindo à vida!